segunda-feira, 21 de maio de 2012

'A insustentável leveza do ser', Milan Kundera

Encontrei algumas citações relativas ao conteúdo desta obra e resolvi hoje lê-la. Extremamente cativante desde o início, de fácil leitura e bastante interessante. É daqueles livros que faz pensar. Incide sobre temas como a poligamia, a dualidade entre o ser carnal e o ser espiritual e as várias formas de vivenciar estas diferenças analisadas de um modo inteligente e atrativo. Não dá muito enfase às descrições, e as personagens vão sendo retratadas ao longo da obra de acordo com as questões a serem analisadas. Mais que um romance, mais que retratos de relacionamentos minados por incompatibilidades, o individualismo e os modos de pensar tão diferentes, os opostos que se atraem, trata-se de uma obra filosófica que ao invés de criar ilusões e finais perfeitos se dedica à análise dessas diferenças e às suas consequências.
Além disso, faz referência aos problemas sociais e políticos da época, sobretudo do totalitarismo e do comunismo, nomeadamente na República Checa e na URSS. O estilo de escrita, irónico e ligeiramente rebelde têm o seu quê de sedutor. Gostei bastante e devo dizer que ganhou o seu lugar no pódio dos meus livros favoritos.

Deixo algumas das citações que mais gostei:

"Não há forma nenhuma de se verificar qual das decisões é melhor porque não há comparação possível. Tudo se vive imediatamente pela primeira vez sem preparação. Como se um actor entrasse em cena sem nunca ter ensaiado. Mas o que vale a vida se o primeiro ensaio da vida já é a própria vida? É o que faz com que a vida pareça sempre um esquisso. Mas nem mesmo 'esquisso' é a palavra certa, porque um esquisso é sempre um esboço de alguma coisa, a preparação de um quadro, enquanto o esquisso que a nossa vida é, não é esquiço de nada, é um esboço sem quadro."

"Ao contrário de Parmenides, parece que Beethoven considerava o peso como algo de positivo. Der schwer gefasste Entschluss, a decisão gravemente pesada está associada à voz do destino (Es muss sein!); o peso, a necessidade e o valor são três noções intima e profundamente ligadas: só é grave o que é necessário, só tem valor o que pesa."

"É natural que quem quer elevar-se sempre mais, um dia, acabe por ter vertigens. O que são vertigens? Medo de cair? Mas então porque temos vertigens num miradouro protegido por um parapeito? As vertigens não são o medo de cair. É a voz do vazio por baixo de nós que nos enfeitiça e atrai, o desejo de cair do qual, logo a seguir, nos protegemos com pavor."

"Sabemos já qual é a resposta para estas perguntas: quando Sabina traíra os pais, a vida abrira-se à sua frente como um longo caminho de traições e cada nova traição a atrai como um vício e como uma vitória. Não quer ficar na fila e não fica mesmo! Não ficará para sempre na mesma fila com as mesmas pessoas e com as mesmas palavras!"

"A merda é um problema teológico mais difícil que o mal. Se ainda recentemente, a palavra merda era substituída nos livros pelos três pontinhos, não era seguramente uma questão de moral. Apesar de tudo, ninguém pode pretender que a merda seja imoral! O desacordo com a merda é metafísico. O instante da defecção é a prova quotidiana do carácter inaceitável da criação. Pás duas uma: ou a merda é aceitável (então porque é que se fecham na casa de banho?) ou a maneira como nos criaram é que é inadmissível.
Daqui se infere que o acordo categórico com o ser tem como ideal estético um mundo onde a merda é negada e onde todos se comportam como se ela não existisse. Este ideal estético chama-se kitsch."

"O kitsch faz-nos vir duas lágrimas de emoção aos olhos, uma logo a seguir à outra. A primeira diz: Que coisa bonita, crianças a correr num relvado! A segunda diz: Que coisa bonita, comovermo-nos como toda a humanidade se comove quando há crianças a correr num relvado! 
Só esta segunda lágrima é que faz com que o kitsch seja o kitsch.
A fraternidade de todos os homens nunca poderá repousar senão no kitsch."

"No reino do kitsch totalitário, as respostas já estão sempre preparadas e excluem toda a pergunta que seja realmente nova. Donde se infere que o verdadeiro adversário do kitsch totalitário é o homem que pergunta. A interrogação é como uma faca que rasga a tela do cenário para permitir que se veja o que está atrás."

"O que restou dos moribundos do Cambodja?
Uma grande fotografia da estrela americana com um bebé amarelo nos braços.
O que restou de Tomas?
Uma inscrição: Ele queria o reino de Deus sobre a Terra.
O que restou de Beethoven?
Um homem carrancudo com uma cabeleira inverossímil a pronunciar solenemente um 'Es muss sein!'
O que restou de Franz?
Uma inscrição: Após um longo desvario, o regresso.
E sempre assim por diante, sempre assim por diante. Antes de nos esquecerem, hão-de transformar-nos em kitsch."

"Logo no começo do Génesis, está escrito que Deus criou o homem para que ele reinasse sobre os pássaros, os peixes e o gado. É claro que o Génesis é obra do homem, e não do cavalo. Ninguém pode ter a certeza absoluta de que Deus realmente cria que o homem reinasse sobre todas as outras criaturas. O mais provável é que o homem tenha inventado Deus para santificar o seu poder sobre a vaca e o cavalo. (...) É um direito que só nos parece natural porque quem está no topo da hierarquia somos nós. Bastava que entrasse mais outro parceiro no jogo, por exemplo um visitante vindo de outro planeta cujo Deus tivesse dito 'Tu reinarás sobre todas as criaturas de todas as outras estrelas' para que toda a evidência do Génesis fosse logo posta em questão. Talvez depois de um marciano o ter atrelado a uma charrua ou enquanto estivesse a assar no espeto de um habitante da Via Láctea, o homem se lembrasse das costeletas de vitela e fosse pedir (tarde de mais) desculpas à vaca."

"Faz mais ou menos o seguinte raciocínio: Não há mérito nenhum em portarmo-nos bem com os nossos semelhantes. Tereza é forçada a ser correcta com os outros habitantes da aldeia, porque senão deixaria de poder lá viver, e, até com Tomas porque precisa dele. Será sempre impossível determinar com um mínimo de segurança em que medida é que as nossas relações com outrém resultam dos nossos sentimentos, do nosso amor, do nosso desamor, da nossa benevolência ou do nosso ódio, e em que medida é que estão previamente condicionadas pelas relações de forças existentes entre os indivíduos.
A verdadeira bondade do homem só pode manifestar-se em toda a sua pureza e em toda a sua liberdade com aqueles que não representam força nenhuma. O verdadeiro teste moral da humanidade são as relações com quem se encontra à sua mercê."

"A nostalgia do Paraíso é o desejo que o homem tem de não ser homem."

"...o amor que a une a Karenine é melhor do que o amor que existe entre ela e Tomás. (...) É um amor desinteressado: Tereza não quer nada de Karenine. Nem sequer exige que ele a ame. Nunca se atormentou com as perguntas que torturam os homens e as mulheres: Gostará ele de mim? Já terá amado alguém mais do que me ama a mim? Amar-me-à mais a mim do que eu o amo? Todas estas interrogações que questionam o amor, que o medem, o perscutam, o inspeccionam, não se arriscarão a matá-lo na casca? Se somos incapazes de amar, talvez seja por desejarmos sermos amados, ou seja, por querermos alguma coisa do outro (o seu amor), em vez de chegarmos junto dele sem reivindicações e não queiramos senão a sua presença.
E ainda há mais uma coisa: Tereza aceitou Karenine tal como ele é, não tentou modificá-lo, deu a sua anuência prévia ao seu universo de cão, não quer confiscá-lho..."

"O horror é um choque, um instante de absoluta cegueira. O horror é totalmente desprovido de beleza. Não se vê senão a luz violenta do acontecimento desconhecido que se espera. A tristeza, pelo contrário, implica que se saiba."

"- Missão? Qual missão? Missão é uma palavra parva. Eu não tenho missão nenhuma. Ninguém tem missão nenhuma. E é um alívio enorme uma pessoa perceber que é livre."


quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

'Lições de abismo', de Daniel Sampaio

Sinceramente fiquei algo desiludida com este livro. Pelos excertos que ia encontrando na net, esperava algo melhor, no sentido em que a escrita é muito fria, nota-se que foi escrito por um psiquiatra e não por um escritor. Mas de qualquer modo, não está má peça, e descreve bastante bem o que uma pessoa deprimida sente. Além disso tem o carácter de ser um livro bom para abrir os olhos a quem está com este tipo de problemas (depressões) e teria sido bom tê-lo apanhado durante a minha crise de adolescência, como tal, aconselho.

Ficam algumas passagens retiradas do livro:

"Estou morto de mais para poder morrer, acreditei ter força suficiente para não me asfixiar, apenas pude suspirar quando quis soltar um grito."

"O tempo passa depressa, o dia esvai-se dentro de mim, os primeiros traços de escuridão de há uns meses ocupam cada vez mais espaço. Na mais profunda solidão espero ser livre, desesperado e abandonado choro, não tenho forças para lutar por muito mais tempo."

"Tenho de tornar claro que não desejo ser preocupação para ninguém, não quero que sofram por minha causa, gostaria apenas de um pouco de calma neste corpo tão cansado."

"Agradeço aos meus pais terem sabido tomar conta do meu corpo. A culpa de o detestar não é da sua responsabilidade. Tudo surgiu de repente."

"Apesar da minha raiva continuo a ser ninguém. Caminho por entre sonhos e procuro a serenidade, busco a ilusão de que este momento vai passar e vou surgir de novo, no espelho, sem vergonha de mim."

"Como uma criança nascida na chuva, condeno-me a ficar para sempre gelado por dentro."

"Oiço-me mas não me escuto."

"Quem sabe a minha queda não me deu forças para continuar, quem sabe se estive no paraíso da solidão ou no limbo que precede a felicidade."

"A minha alma leva-me para demasiado longe."

"Tenho pena que me oiçam gritar e pensem que são suspiros."

"O meu olhar ainda pergunta o porquê do teu sorriso gélido."

"Nem sempre desisti. Durante algum tempo denunciei a minha revolta, gritei liberdade...mas a realidade à minha volta não se alterou."

"Não devo nada a ninguém, lamento apenas que não tenham entendido o abismo em que mergulhei.Questiono-me sobre se vou ser amado por um dia que seja, se alguém sentirá a minha falta."

"Alguém me pode explicar o fim? Alguém sobrevive à própria morte? Alguém voou até ao infinito? Quero conhecer tudo."

"Não sou ingrato, por isso não quero abandonar de repente quem ainda me abraça, nem sou capaz de submeter alguém a um hipotético caos."

"O meu grito por liberdade não tocou ninguém por dentro."

"Estou demasiado cego e mudo para morrer, demasiado morto para enfrentar a morte. Sou eu a dor, a causa da existência, o ruído do coração a perder-se no meu peito. Mesmo que não possa sair desta imensidão, a memória não se há-de apagar. Morto já devo estar, porque não consigo fazer com que acreditem que escolhi o meu trilho final.Violento é o meu acordar."

"Talvez uma simples promessa de alguém me convença a ficar aqui. Se a escutar em algum momento, tentarei que a noite não me rasgue o coração."

"Deslizas sem admitir que tens asas para voar."

"Sinto o corpo a decair e a alma a rebentar."

"Desejo a mudança, uma ansiada reacção, um rumo que tarda em definir-se, não posso continuar a esconder o que me rodeia com suspiros incompreensíveis para os outros."

"Sabes bem que dei todo o meu ser, dei tudo de mim, fiz o impossível, que era acreditar no possível, poder amar-te para sempre com todas as minhas forças, esperar um novo dia com a certeza de te encontrar. O silêncio, contudo, tomou conta de mim."

"Como esquecer a promessa desfeita, a mentira, a injúria, a traição, como não lembrar a construção de um amor intenso e partilhado, feito de inquietações e promessas renovadas?"

"Tenho a certeza de que posso desenhar a minha salvação, mas morro em cada vez que acordo."

"Estou só."

"Agora que não te vejo, olho para dentro de mim e é como se encontrasse cicatrizes no nosso amor, pedaços de mim e de ti, dantes ligados, agora sem rumo no meu coração."

"Sinto no peito a dor de um enorme esforço para viver. Vou a caminho de ti e não sei onde estás, procuro-te em cada esquina."

"Vou a caminho de uma solidão sem regresso, onde quer que estejas, ouve o meu grito, escuta a minha voz por um instante."

"Se conseguir adormecer quero-te a meu lado, apesar do que me fizeste sofrer. Perdoo-te, mas não te quero esquecer."

"Sinto-me agora diferente. É como se a doçura que captei em ti, se transformasse num veneno que mata lentamente. Oiço chamar ao longe. Encontro-te e perco-te outra vez. Num ano aconteceu tanta coisa que não me reconheço quando me olho ao espelho, a procurar uma calma que não chega. Em sonhos procuro-te de novo, ao ver-te não te vejo nem te alcanço. Acordo exausta e sozinha, viro-me na cama à procura de um momento de paz."

"O tempo à volta é um fio de dor que procuro atravessar sem olhar para trás."

"Afinal quem sou?"

"Como explicar que queria ser dona do meu destino, sentir-me alguém, poder errar e corrigir, viver?"

"Nesse amanhecer perdi-te e ainda não te encontrei de novo, foi como se uma porta de ferro se tivesse fechado entre nós."

"É mesmo tarde para nos amarmos de novo?"

"Não tenho ninguém a quem anunciar que não durmo."

"Vivo à sombra das sombras, qual a imagem de mim própria?"

"Deixa-me, no entanto, viver na esperança de poder continuar a amar-te, na ilusão de que um dia ouvirás ou lerás o que escrevi. Por agora, é como se me desses um pequeno ribeiro e eu quisesse o mar, como se pretendesse todas as flores do mundo e me entregasses um pedaço de erva."

"A verdadeira loucura é a da dor que não se vê."

"Ando agora à procura de um sol que nunca nascerá, nomes vazios preenchem as minhas memórias."

"Sinto que hoje vivo fechado à volta do medo, rodeado por sombras que não passam."

"Só quem todos os dias vai morrer pode pensar assim."

"Em que momento nos zangámos por dentro?"

"Agora é demasiado tarde para falarmos."

"Não achas que merecemos outra oportunidade?"

"Tudo em mim é dúvida e morte."

"Pergunto a Deus, a um Deus qualquer, se aquela alegria suprema não poderia durar para sempre, porque razão ma deu a conhecer?"

"Alguém se deteve, um instante que fosse, no modo como me poderia sentir? Alguém se interrogou se não seria bom uma conversa comigo pela noite dentro?"

"Necessito de alguém que me ame sem condições, um ombro seguro onde possa encostar a minha cabeça louca e perdida, um colo para me sentar a contar os meus sonhos, uma mão que me ampare e cure as feridas."

"Em que momento perdi a felicidade da minha infância?"

"Estou triste mas mais livre."

"Faço desaparecer o passado da minha cabeça (basta esquecer que te conheço)."

"Basta esquecer que te conheço, não me lembrar de nada que me faça sofrer, perder a memória."

"Estavas perto e longe ao mesmo tempo, num dia quase prometias a lua, no outro tinhas pressa.""Precisas de ter relações sexuais e não ralações sexuais."

"Quero perdoar e não esquecer de tudo o que não me deste, de tudo o que em ti ainda amo ficou apenas a cor dos teus olhos."

"Nunca mais te quero ver, desaparece, não me olhes."

"Em que momento deixámos de nos olhar? Em que instante permitimos que crescesse este muro que nos separa?"

"Escapas-me.. a pouco e pouco perdi-te."

"Custa-me tanto ver-te desiludido! Só tenho uma desculpa, é a de que nunca falaste comigo sobre a tua ilusão."

"Ter-te perdido será real, se te tenho sempre a meu lado, embora não te possa tocar?"

"Quero estar comigo mas sem me afastar do mundo."

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

'Os filhos da droga', Christiane F.

Também conhecido por 'Eu, Christiane F., treze anos, drogada e prostituída'. Esta história é marcante e profundamente triste, penso que seja porque é o tipo de coisa que poderia acontecer a qualquer um de nós dadas as condições em que ela se encontrava. Estamos na Alemanha pós-guerra. Christiane F. é uma menina habituada à vida do campo que se vê obrigada a mudar-se para a cidade. O negócio do pai não corre bem, e além de terem de mudar-se para um complexo industrial, que para alguém como Christiane é análogo a um pesadelo, o pai começa a bater em toda a gente em casa. Sujeita a violência em casa, e com dificuldades em adaptar-se, Christiane procura um escape, acabando por começar a frequentar discotecas e associar-se a más companhias. De um cigarro e do álcool passa para o haxixe, seguido pelo LSD, até entrar na heroína e dar o grande salto para o que seria o inferno do resto da sua vida.
O livro fala da sua história, assim como a dos seus amigos drogados, uma das amigas tendo sido a mais jovem vítima da heroína, tendo falecido por overdose, com apenas 13 anos. Dos seus amigos, grande parte deles morreram, Christiane e o seu namorado, Detlef, com quem se prostituía no Zoo, sobreviveram. Detlef conseguiu recompor a sua vida, tendo deixado as drogas em 1980, é hoje casado, tem uma família e uma vida estável. Christiane, por outro lado, apesar de ter passado algumas alturas sem a heroína, voltou sempre a encarreirar no vício, até hoje. O seu caso é considerado como irreversível, tem um filho que de momento está numa instituição.
É tristemente fascinante ver como esta história se escreveu desta forma devido a um único acontecimento decisivo. Se Christiane nunca tivesse ido para Berlim, nunca teria embarcado nesta jornada auto-destrutiva. Se tivesse admitido tudo e ficado em casa da avó na fase inicial do seu vicio, provavelmente teria conseguido largá-lo. É a falta de coragem, que às vezes se revela a nossa perdição, e quando nos damos conta disso... Já não podemos voltar atrás...


"Era  uma  excitação  louca.  Minha  mãe  passava  os seus dias a empacotar, a encher caixotes e malas. Eu percebia que íamos começar uma vida nova. Acabava  de  completar  seis  anos,  e  depois  da mudança  entraria  para  a  escola  primária.  Enquanto minha  mãe,  cada  vez  mais  nervosa,  se  dava  ao trabalho  de  empacotar  tudo,  eu  ficava  quase  o  dia inteiro  na  casa  de  Võlkel,  o  fazendeiro.  Esperava  as vacas    voltarem    para    o    estábulo    para    serem 
ordenhadas,  dava  comida  aos  porcos  e  às  galinhas, rolava no feno com meus amigos e passeava com os gatinhos no colo. Um verão maravilhoso, o primeiro do qual tive plena consciência. Sabia  que  logo  iríamos  partir  para  muito  longe, para  viver  em  uma  grande  cidade  chamada  Berlim. Minha  mãe  partiu  antes  de  nós  para  arrumar  o apartamento.    Algumas    semanas    depois,    minha irmãzinha,  meu  pai  e  eu  fomos  de  avião  ao  seu 
encontro.  Para  nós,  as  crianças,  foi  o  primeiro  vôo. Tudo era apaixonante. Meus    pais    nos    tinham    contado    histórias maravilhosas.  Nós  iríamos  morar  em  um  imenso apartamento  de  seis  cômodos.  Eles  ganhariam  muito dinheiro. Minha mãe disse que teríamos um quarto só para  nós.  Iríamos  comprar  móveis  sensacionais.  Ela descrevera com detalhes a decoração de nosso quarto. Eu me lembro porque, durante toda a minha infância, 
nunca  deixei  de  pensar  neles.  E,  mais  os  anos passavam, mais minha imaginação os embelezava. 
E  também  não  me  esqueci  de  como  era  o apartamento, quando lá chegamos.  Deve  ser  porque, de  cara,  me  provocou  um  verdadeiro  sentimento  de horror. Era tão grande e tão vazio que eu tinha medo de me perder. Quando se falava um pouco mais alto, as vozes ressoavam de maneira inquietante. Apenas  três  cômodos  estavam  mobiliados.  No quarto das crianças, duas camas e um velho armário de   cozinha   onde   minha   mãe   guardava   nossos 
brinquedos. No outro quarto, a cama de meus pais. No terceiro  cômodo,  o  maior,  um  velho  divã  e  algumas cadeiras.  Assim  era  nosso  apartamento  no  bairro  de Kreuzberg, na marginal Paul Lincke. 

Um  dia,  o  divã,  as  camas,  o  armário  foram colocados em um caminhão que os transportou até um prédio   do   conjunto   residencial   Gropius.   Ali   nos instalamos  em  um  apartamento  de  dois  cômodos  e meio, no décimo primeiro andar. O meio cômodo era o quarto  das  crianças.  Todas  as  coisas  bonitas  de  que minha mãe nos falara jamais caberiam ali. O  conjunto  Gropius  abriga,  em  suas  torres, quarenta  e  cinco  mil  pessoas.  Entre  os  prédios, gramados  e  centros  comerciais.  De  longe,  tudo  isso tem um ar de novo, tudo parece muito bem-cuidado, mas, quando se está dentro, entre os prédios, fede a xixi  e  a  cocô.  É  por  causa  de  todos  os  cachorros  e crianças  que  vivem  nesse  conjunto.  E  no  vão  da escada, fede ainda mais. Meus pais ficavam furiosos, diziam que era culpa dos filhos dos proletários, que eram eles que sujavam as   escadas.   Mas   não   era   culpa   dos   filhos   dos proletários.  Aprendi  isso  na  primeira  vez  quando, brincando  lá  fora,  tive,  de  repente,  vontade  de  ir  ao 
banheiro. O tempo de esperar o elevador e de chegar ao décimo primeiro andar já me tinha feito mijar nas calças.  Meu  pai  me  bateu.  Depois  de  três  ou  quatro experiências do mesmo gênero — não subir a tempo e receber uma bofetada —, fiz como os outros: procurei um cantinho discreto para me agachar. Mas, como dos prédios  se  enxerga  praticamente  tudo,  o  lugar  mais seguro ainda era a escada. As  crianças  do  conjunto  me  consideravam  uma pequena retardada: não tinha os mesmos brinquedos que elas, nem a mesma pistola de água. Eu me vestia 
e  falava  de  outra  forma  e  não  conhecia  as  suas brincadeiras. Eu também não gostava delas. No  meu  vilarejo  íamos  sempre  de  bicicleta  ao bosque, até um riacho que passava sob uma pequena ponte. Aí se construíam castelos e barragens de água... Todos  juntos  ou  cada  um  por  si.  E  quando demolíamos  nossas  obras,  era  com  acordo  geral.  Era bem  divertido.  Além  disso,  ninguém  era  dono  da  lei. Cada  um  podia  sugerir  brincar  disso  ou  daquilo. Depois, conversávamos. Algumas vezes os mais velhos concordavam   com   os   mais   jovens,   e   ninguém reclamava. Era uma verdadeira democracia infantil. 
No  conjunto  Gropius  tínhamos  um  chefe.  Era  o menino mais forte e o que tinha a pistola de água mais bonita. Brincávamos sempre de bandido. O chefe dos bandidos, naturalmente, era ele. E a principal regra do jogo consistia em obedecer-lhe cegamente. Na maior parte do tempo não se brincava junto, mas  uns  contra  os  outros.  Na  verdade,  tratava-se, sobretudo,  de  um  maltratar  o  outro.  Por  exemplo, pegar  seu  brinquedo  novo  e  quebrá-lo.  A  brincadeira toda  consistia  em  humilhar  o  outro  e  obter  alguma vantagem para si mesmo. A de conquistar o poder e exibi-lo. Os mais fracos apanhavam mais. Minha irmãzinha não  era  muito  forte,  era  um  pouco  medrosa.  Eles faziam o diabo com ela, e eu não podia socorrê-la. 


Não compreendi  muito  bem  por  que  fora  tão  grave  ter entupido aquele bueiro. Na nossa cidadezinha, quando a  gente  brincava  à  beira  do  riacho,  fazíamos  muito mais do que isso e nunca ninguém nos disse nada. O que  eu  mais  ou  menos  aprendi  é  que  no  conjunto Gropius   as   únicas   brincadeiras   autorizadas   eram aquelas previstas pelos adultos. Quer dizer, brincar na areia  e  escorregar  no  tobogã.  Ter  idéias  próprias  era perigoso. 
Meu novo encontro com o zelador foi pior ainda. Olha só o meu azar. Estava passeando com Ajax e tive a idéia de colher algumas flores para minha mãe. Na cidadezinha  do  interior  eu  lhe  trazia  flores  de  quase todos os meus passeios. Entre os prédios só cresciam umas   rosinhas.   Recolhi   umas   três   ou   quatro, machucando  meus  dedos  com  os  espinhos.  Eu  ainda 
não sabia ler o que dizia a placa que proibia aquilo ou então não tinha entendido bem o que estava escrito. Compreendi  tudo  imediatamente  quando  vi  o zelador correr em minha direção, gritando, balançando os  braços  e  atravessando  o  gramado.  Apavorada, gritei: "Atenção, Ajax!" Ajax levantou as orelhas, ficou atento, os pêlos de sua nuca se eriçaram e observou o zelador com um ar perverso. Ele saiu correndo, apavorado,  pisando  uma vez mais na famosa grama. Ficou mudo até chegar à entrada  do  prédio,  onde  recomeçou  a  gritar.  Ficara contente  com  tudo  isso,  mas  escondi  as  flores,  pois percebi que, mais uma vez, fizera algo proibido. Quando  cheguei  a  casa,  o  gerente  já  havia telefonado:   segundo   ele,   eu   havia   atiçado   meu cachorro contra o zelador. Pelas flores não recebi o beijo maternal, mas uma boa surra de meu pai. 


Chegou o início das aulas. Eu estava me sentindo felicíssima por ir à escola. Meus pais tinham dito que era  preciso  ser  sempre  comportada  e  obediente  ao professor. Eu achava isso muito natural. No vilarejo as crianças respeitavam os adultos. E eu, creio, pensava que os outros também seriam obrigados a obedecer ao professor. Mas  não  foi  assim. 
(...)

Dizia a mim mesma: você não tem nada que fazer com  professores  que  só  vê  uma  hora  de  vez  em quando. Qual é essa de se cansar para lhes agradar? O importante  é  ser  aceita  por  gente  com  quem  você passa  o  dia  inteiro.  E  passei  a  modificar  todo  o  meu comportamento  na  sala  de  aula.  Não  tinha  nenhuma relação  pessoal  com  os  professores.  Aliás,  a  maioria deles  estava  pouco  ligando,  não  tinham  mesmo  autoridade  e  a  única  coisa  que  faziam  era  berrar. Aprontei  mil  e  uma.  Em  pouco  tempo,  fui  capaz  de, 
sozinha,  acabar  com  uma  aula.  Naturalmente,  por isso, passei a ser bem considerada por todos os meus colegas. 
Catava moedas no fundo das gavetas para poder comprar cigarros e ir para o canto dos fumantes. Kessi ia sempre em todos os recreios. Quando comecei a ir com  mais freqüência, senti que  ela se interessou por mim. Nós nos encontrávamos à saída da escola. Afinal, um dia, ela me convidou para ir a sua casa. Bebemos cerveja: senti uma coisa gozada na cabeça e falamos 
de  nossas  famílias.  Ela  teve  as  mesmas  merdas  de problemas que eu. Até pior...

 —  Em  primeiro  lugar,  esta  droga  é  minha, quer dizer, quase toda. Fui eu que recolhi o dinheiro. Em segundo lugar, pare de dizer besteiras: eu não vou ficar  como  você,  sei  me  controlar.  Vou  só  experimentar para ver como é, depois não toco mais nela. 

Sem  me  dar  conta,  eu  me  dividi  em  duas.  Duas pessoas  absolutamente  diferentes.  Escrevia  cartas  a mim  mesma.  Mais  precisamente,  Christiane  escrevia para  Vera.  Vera  é  o  meu  segundo  nome.  Christiane era  a  menina  de  treze  anos  que  queria  ir  à  casa  da 
avó. A menina comportada; Vera, a drogada. Tão  logo  minha  mãe  me  pôs  no  trem,  não  era 
nada  mais  que  Christiane.  E  uma  vez  na  cozinha  de minha avó, sentia-me completamente em casa, como se  nunca  tivesse  posto  os  pés  em  Berlim.  Só  de  ver minha  avó  sentada  naquela  cozinha,  com  seu  ar tranqüilo  e  confortante,  me  aquecia  o  coração.  Eu amava minha avó, e gostava de sua cozinha. Era uma verdadeira cozinha camponesa, fogo na lareira, tachos e  panelas  imensas...  sempre  um  bom  prato  cozinhando,  como  num  livro  de  gravuras.  Eu  me  sentia bem. 

Depois  comecei  a  ter  crises  de  angústia  quando me  encontrava  sozinha  à  tarde  em  minha  cama.  Via dançar   diante   de   meus   olhos   as   caras   dos freqüentadores  do  Sound,  e  pensava  que  dentro  em breve  teria  que  voltar  a  Berlim.  Sentia  um  medo terrível de Berlim. Pensava que poderia pedir à minha avó para me deixar ficar com ela, mas como dizer-lhe o  motivo,  e  o  que  diria  à  minha  mãe?  Seria  preciso confessar  tudo,  mas  eu  não  me  decidi  a  fazer  isso. Minha avó cairia dura, morta, se eu lhe contasse que sua  netinha  se  picava  com  heroína.  Era  preciso, portanto, voltar a Berlim. 

Às  vezes  amigos  de  Detlef  me  diziam:  —  Saia dessa, você é muito jovem para isso. É só se separar de Detlef que você conseguirá. Ele, de qualquer jeito, nunca conseguirá sair dessa. Não seja idiota, afaste-se dele. 
Mandava-os à merda. Separar-me de Detlef. Nem em   sonhos!   Se   ele   quisesse   se   matar   eu   o acompanharia.  Eu  nem  falava  disso  e  respondia-lhes simplesmente: — Vocês estão enganados, não somos viciados. Quando quisermos parar, paramos. 

Uma vez fora do carro, me senti muito calma e fiz uma  espécie  de  balanço:  "Eis  aí.  Você  tem  catorze anos. Há um mês você ainda era virgem. Agora você se vende". 
Depois, não pensei mais nem no cara nem no que fiz. Estava mais contente do que triste. Por causa do dinheiro.  Nunca  tivera  tanto  de  uma  só  vez.  Não  me preocupava  com  Detlef  e  nem  me  perguntava  o  que ele iria dizer. A crise começou e pensei apenas numa coisa:     minha     picada.     Tive     sorte,     encontrei imediatamente   nosso   revendedor   habitual.   Vendo aquele monte de dinheiro, ele me perguntou: — Onde você  pegou  isto?  Você  se  prostituiu?  —  Eu,  com  ar superior,  respondi:  —  Você  está  sonhando.  Eu,  fazer isso?  Prefiro  parar  de  me  picar.  Foi  meu  pai  que  me deu.  Ele,  de  repente,  se  lembrou  de  que  tem  uma filha. 


Nos  meses  que  se  seguiram,  eu,  Babsi  e  Stella discutíamos  quase  diariamente  sobre  a  questão  da nossa   honra   de   prostitutas.   Cada   uma   tentava demonstrar  a  si  mesma  e  às  outras  que  ainda  não descera ao ponto mais baixo da escala. E quando nos encontrávamos  somente  em  duas,  falávamos  mal  da terceira. 

Depois tive a impressão de estar a perder todo o meu sangue... Essa sensação durou horas. Não podia mais andar, nem falar. Cheguei sem perceber até à sala de cinema do Sound. Fiquei cinco horas numa poltrona a sentir que estava a sangrar até à morte.

À noite voltei a tomar alguns comprimidos. Um indivíduo normal morreria. Para mim, isto me permitia ao menos dormir algumas horas. Um sonho me despertou: sou um cão que sempre foi tratado bem pelos homens até ao dia em que o prenderam em um canil e o torturaram até à morte.

Achei que desta vez era o fim. Mas não era uma overdose, era só vinagre. Perdi toda a resistência e o meu corpo não me obedecia mais. Foi assim que os outros morreram. Muitas vezes, depois de uma picada, eles perdiam a consciência. E um dia eles não acordavam mais. Não sei porque tive tanto medo de morrer. De morrer só. Os drogados morrem sós. Mais frequentemente em banheiros fedorentos. Tive, então, uma verdadeira vontade de morrer. No fundo, não esperava por outra coisa. Não sabia o que estava fazendo no mundo. Antes, eu também não sabia muito bem. Mas um viciado vive para que? Para se destruir e destruir aos outros? Pensei, naquela tarde, que seria melhor que eu tivesse morrido, mesmo que fosse só pelo amor à minha mãe. De qualquer forma, não sabia mais se existia ou não..."

quarta-feira, 7 de julho de 2010

'Insónia', de Stephen King

No seguimento da Carrie, de que tinha gostado tanto, resolvi ler outra obra de Stephen King. Optei por Insónia. Maldito momento em que o fiz. A obra começa de um modo bem interessante, ligamo-nos facilmente às personagens e a todo o meio... E de repente, atinge um ponto estacionário. Tem uma quantidade soberba de palha pelo meio, que nos sentimos compelidos a ler, porque não sabemos qual dessa palha de vai revelar como não sendo palha. Perdida nessa enorme seara, quis-me parecer que o próprio Stephen King não sabia bem que rumo dar à história e então foi divagando e lançando ideias, algumas das quais foram ficando por explorar ou tendo um término claramente forçado.
A história em si está engraçada e interessante. Não inspira exactamente terror, mas sim suspanse. Mas não é história para mais de 700 páginas. O livro poderia ter sido mais bem tratado e achei um descuido da parte do autor. Ou preguiça quiçá.
Trata-se de um senhor, Ralph, que após a morte da mulher começa a sofrer de insónias, mas umas insónias estranhas... Não se conseguindo livrar delas, a privação do sono vai-o levando para uma espécie de hiper-realidade, e passa a ver o mundo de maneira diferente, fazendo da sua missão salvá-lo de um acaso que está prestes a ocorrer.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

'Carrie', de Stephen King

Li este livro faz algum tempo. Numa altura em que, farta de ver o nome de Stephen King, comecei a sentir-me na necessidade de ler algo dele. A escrita é acessível e é o tipo de livro que prende o leitor (pelo menos no meu caso li-o em algumas horas). Consegue, em pouco tempo, criar todo o ambiente necessário na cabeça do leitor para que este consiga vivenciar a história, com todos os fundos emocionais necessários que lhe garantem o seu poder de chocar e horrorizar.
A história gira em torno de uma jovem rapariga de liceu, Carrie, e da sua vida peculiar. Com uma mãe instável e conservadora ao nível 'internem-me!', a jovem Carrie não tem noção do mundo como ele é já que se encontra barrada na vida fundamentalista de cristã da mãe, não conhecendo outra realidade. Além de ser incompreendida e de sofrer de bullying na escola, sofre também de extrema violência psicológica às mãos da mãe, que a condena pelos seus poderes, que a própria Carrie desconhece ter. Como é óbvio, até um dia.
Carrie começa a aperceber-se dos seus poderes telekinéticos e começa a usá-los contra quem lhe faz mal. Inicialmente a jovem não consegue controlar os seus poderes, que apenas surgem em situações de grande stress. O momento mais fantástico do livro foi sem dúvida o da destruição da cidade. Está uma descrição absolutamente fantástica, consegui imaginar ao pormenor toda a grandiosidade com que Stephen King a transmitiu.
Desaconselho vivamente os filmes. Vi-os após ter lido o livro e não fazem o mínimo de jus a esta obra fantástica.

terça-feira, 22 de julho de 2008

'Flash (ou le grand voyage)', de Charles Duchaussois

Em português 'Viagem ao mundo da droga'. Este livro é a autobiografia, na primeira pessoa, de Charles Duchaussois, um jovem francês, e o seu mergulho no mundo da droga. Começou como traficante, mas cedo deu o salto para usuário. Passando por cidades como Istambul, Bombain, Catmandu, Charles vai fazendo a sua jornada por um oásis de droga, afundando cada vez mais nesse mundo. A história conta pormenorizadamente as experiências com as várias drogas que experimentou ao longo desta sua aventura, as peripécias porque passou, as profissões mais loucas que realizou para se manter a ele e ao seu vício, que vão desde colheita de haxixe a 'médico' e 'cirurgião', até se tornar, sem reparar um 'Johnny Junkie'. Aqui podemos ver todo o seu percurso, até à degradação total, física e moral de Charles, assim como da sua louca recuperação nunca total, desde a ida para as montanhas à encarceração.
"Nunca um consumidor foi tão longe e, salvo in extremis, sobreviveu para relatar a infernal viagem ao mundo das drogas. Esta obra, já um clássico, é um relato apaixonante e simultaneamente arrepiante da extrema miséria a que o consumo de drogas pode conduzir. Um sério aviso a todos os que são «espicaçados» pela curiosidade." <-- Um amigo ofereceu-me este livro por esta mesma razão, e pelo menos no meu caso funcionou. Estabeleci limites inquebráveis, e cheguei a oferecê-lo a outra pessoa, que me pareceu estar a perder-se. Não sei se funcionou. Conheço pessoas que conseguiram abrir os olhos e verem-se numa situação lastimável, conheço outras que não e nunca vão ver. De qualquer modo, considero leitura obrigatória para todos que têm intenção de dar um passo nesta direcção, se o querem fazer, penso que devam fazê-lo informadamente, e esta é uma fonte realística e segura.

Aqui fica um excerto, nomeadamente, do Johnny Junkie:

Meto-me pela escada de velhos degraus arruinados e, no primeiro andar, entro num quarto com cerca de quatro metros por cinco. Como chiqueiro, raramente vi melhor. No tecto, vigas enegrecidas. No chão, coberto de poeira e de detritos duvidosos, um soalho rudimentar. Naturalmente, as paredes são de adobe. Das quatro vidraças da janela, três não existem e a quarta é atravessada pelo tubo de ferro de um fogão de serradura. Não há camas, nem mesmo tarimbas. A toda a volta do quarto, enxergas de serapilheira com um imundo cobertor árabe. Todos bizarramente recortados. Em breve saberia porquê. Aqui e além, sacos, bagagem.
O ar é pesado, impregnado de um cheiro a suor sujo e a urina, um pouco como num jardim zoológico. E por sobre tudo isto um vago fundo de incenso e de haxixe.
É então que o meu olhar, habituando-se a pouco e pouco à obscuridade, descobre alguém no canto mais obscuro do quarto.
Uma interminável forma deitada. É um rapaz, um europeu esquelético, barbudo, com os cabelos compridos e ondulados. Tem os pés nus e muito sujos. Nas pernas, umas calças de fazenda que devem ter sido brancas e, por cima delas, uma camisa larga, também’ branca, sem colarinho, com grandes mangas muito largas.
Atiro um bom-dia ao acaso. Não tenho resposta. Aproximo-me. O rapaz lança-me um olhar distraído e sorri vagamente. Tenho a impressão de que mal me viu. Aliás, tem outra coisa a fazer, e assisto a uma estranha operação.
Apoiando-se num cotovelo e tossindo com uma tosse seca e rápida, tira uma seringa do saco, depois uma pequena caixa de cartão, género produtos farmacêuticos. No soalho, a seu lado, põe a seringa com a agulha já pronta. Sem se preocupar absolutamente nada com a minha presença, abre a caixa, tira dela um tubo, destapa-o e deixa cair na concha da mão cinco ou seis pequenos comprimidos redondos e brancos que põe também no chão, ao lado da seringa. Rebusca no saco, tira dele um pedaço de papel de jornal e coloca-o ao lado dos comprimidos, que passa para cima do papel. Agarra depois num copo meio estalado, e, com pequenos golpes, pulveriza os comprimidos a um por um, até os reduzir a poeira muito fina.
Observo-o, fascinado. Inclino-me um pouco e leio na caixa esta palavra: Metedrine. Sei que se trata de um poderoso excitante, género maxiton.
Mas o drogado, pela primeira vez, parece aperceber-se da minha presença. Estende-me o copo e, num inglês perfeito, pede-me que deite nele dois dedos de água.
- Onde? - digo eu circundando o olhar pelo quarto.
- Na torneira, ao cimo da escada - explica-me ele.
Vou ao patamar e num canto, ao lado de um buraco donde sai um odor de latrina, vejo uma velha torneira de cobre manchada de verde acinzentado e que goteja. Deito no copo a água que o outro pediu.
- Thanks  (obrigado) - diz-me o  drogado  com um sorriso fugitivo.
Dobra habilmente o papel de jornal em goteira e faz correr o pó branco para o copo. Com o dedo agita a mistura por um momento. Pega na seringa e aspira tudo através de um algodão. Depois tira ainda do saco um cinto, arregaça a manga esquerda da camisa, enrola o cinto em torno do que lhe resta de bicípete, um pouco acima do cotovelo. Aperta.
Como não o consegue, faz-me sinal para o ajudar.
- Aperta, ali, está bem? - Pede-me ele.
Aperto. As veias fazem saliência, dilatadas por pequenas hérnias, com pontos negros de sangue seco um pouco por toda a parte, e manchas azuis debaixo da pele.
Espeta a agulha a direito, sem hesitar. Retira um pouco o pistão e entra na seringa um pouco de sangue vermelho.
Com um ar satisfeito, o tipo injecta então toda a mistura, arruma à pressa os seus utensílios e volta a deitar-se, de lado contra a parede.
Já não se mexe.
(...)
A rapariga sorri-me e sinto-me encorajado. Mostro-lhe o drogado, que ainda está na mesma posição em que o deixei.
- Talvez esteja doente? - digo eu, sempre em inglês, porque toda esta gente parece não saber falar outra língua senão o inglês.
A rapariga levanta os ombros.
- Johnny? - diz ela rindo. - Há três meses que não se mexe.
- Três meses?
- Sim...
A coisa não parece emocioná-la. Oscila sobre as nádegas e cantarola, olhando para o tipo:
- Johnny Junkie, Johnny Junkie.
Não perguntei o que quer dizer Junkie mas depressa sei o que é; é o nome que se dá aos drogados no último grau, aos que já não podem escolher senão entre a porta do hospital e a porta do cemitério.
Um nome que também eu havia de ouvir murmurar à minha passagem, numa noite de loucura inimaginável, em Catmandu...

E o prefácio, muito conhecido, deste livro:

"Flash, em inglês, quer dizer: relâmpago.
Para um drogado significa: espasmo.
O flash é o que se passa no corpo do viciado quando a droga entra nas suas veias, injectada pelo pistão da seringa.
O que tem a violência do relâmpago e no espasmo amoroso.
Um dia ofereci a uma rapariga um pouco desse pó pegajoso, um tanto amarelado, que escorrega na palma da mão como hesitante, e que é a heroína, o «cavalo».
Essa rapariga estava a precisar dele.
Chorava, torcendo as mãos, enquanto eu lhe preparava a injecção e suavemente, com palavras de ternura, procurava acalmá-la.
Apliquei o garrote no braço, piquei a veia saliente na prega do cotovelo e injectei o líquido formado pela solução do pó em água destilada.
Quanto mais líquido entrava nas veias mais a rapariga se dobrava para trás, mais os seus olhos se ensombreciam, mais vermelhas se lhe tornavam as faces, mais ela arquejava.
Por fim deixou-se cair no leito, gemendo de prazer. Pouco depois, acalmada, feliz, ficou adormecida. Exactamente como depois do amor.
Tivera o seu flash.
E agora havia «partido», «viajava», era défonse.
Injectei-me então por minha vez e, por minha vez, tive o meu flash, «viajei» e fui défonse.
Só  a injecção - a  piquouze, o shoot - é que dá o flash.
é por isso que todo o drogado, mais tarde ou mais cedo, chega fatalmente à injecção.
E torna-se um junkie."

quarta-feira, 12 de março de 2008

'Fazes-me falta', de Inês Pedrosa

Li este livro já há alguns anos. O que me chamou a atenção inicialmente foi o modo de escrever, único e absolutamente irresistível desta senhora. Ela escreve de um modo quase fantasioso, e raro, porque as próprias palavras, o próprio modo de escrever, irradia beleza e tem uma estética muito boa. É claro que isto foi o que, inicialmente me chamou a atenção, mas claro que não foi tudo o que eu gostei. Temos aqui uma história de amor, mas não uma história de amor normal. Mais que isso, uma história de amor espiritual e profundo, que se torna ainda mais forte após a morte dela. 
Toda a descrição é fantástica, ainda mais potenciada pelo tal estilo de escrita, e a história também não fica nada atrás. Confesso que, pondo-me na pele da escritora não conseguia ver outro final, mas a parte da 'sininho' não me ocorreu. Foi um pormenor bonito.
Já dei por mim após uma separação amorosa a remeter para este livro, porque 'nos' revejo, e porque sim, é a melhor descrição da sensação de perder um amor forte e intenso, de perdermos a nossa alma gémea.

Deixo algumas citações (sei que exagerei, mas é o quanto este livro me tocou):


"Deus procura primeiro os que sofrem antes do conhecimento específico da dor, talvez porque os outros sabem demasiado para poderem ser salvos."

"Não me levantarei da cama amanhã, depois de Lhe pedir em surdina que dê um impulso maior ao balouço, que o empurre com força até que os pés me voem para fora do calor aterrado dos lençóis. Ninguém mais vai estar à minha espera, não terei de me disfarçar de desculpas, não voltarei a iludir ou desiludir ninguém. Não voltarei à desilusão do renascimento."

"Estou sozinho. Sozinho com o coração em bocados espalhados pelas tuas imagens. Já não posso oferecer-te o meu coração numa salva de prata. Alguma vez o quis? Alguma vez o quiseste? Dava-me agora jeito um deus qualquer para moço de recados. Um deus que te afagasse os cabelos e me recordasse de como eram macios."

"Agarrei-me a essa derradeira nota do teu calor. Ficaste-me com um travo a incenso e a flores mortas. O cheiro do amor vedado que abandonáramos pela paisagem na nossa pré-história. Chamo-lhe amor para simplificar. Há palavras assim, que se dizem como calmantes. Palavras usadas em série para nos impedir de pensar. O que existia, existe entre nós, é uma ciência do desaparecimento. Comecei a desaparecer no dia em que os meus olhos se afundaram nos teus. Agora que os teus olhos se fecharam sei que não voltarás a devolver-me os meus."

"De qualquer modo, a morte espreita sobre todos os prazeres dessa cronologia a que nos agarramos para escapar ao tempo. O que somos para além do que vamos sendo? O meu além eras tu - íman da minha íntima, impessoal temporalidade. Redenção dos males que me amputaram. Tu. Agora puro vapor do universo."

"Fazes-me falta. Mas a vida não é mais que do que essa sucessão de faltas que nos animam. A tua morte alivia-me do medo de morrer. Contigo fora de jogo, diminui o interesse da parada. E se tu morreste, também eu serei capaz de morrer, sem que as ondas nem o céu nem o silêncio se transtornem. Cair em ti, cada vez mais longe da mísera ficção de mim."

"Vive-se melhor a inventar a verdade todos os dias, dizem-me. Faz de conta que não morreste, faz lá."

"Como é que eu mato a tua morte?"

"Fazes-me falta, merda! - já te disse?"

"Quantos dias demorarei a esquecer o teu rosto? Lembro-te a cada minuto. Parcela a parcela para não te perder."

"Eu só queria ver de que material era feito o teu amor por mim. Precisava de escangalhar o teu coração para o fazer encaixar no meu. E agora tenho de o desencaixar outra vez para sair deste limbo. Mas não sei como. Sem o teu coração não consigo amar - não me abandones outra vez. Logo eu que amava o mundo inteiro, não é? Amar em abstracto é muito mais ágil que amar em concreto."

"A imortalidade é irrelevante; deste lado da morte é a mortalidade que cintila: saber-me mortal dava densidade e cor às pedras do meu caminho; porque eu era mortal, a lua lembrava-me o amor e o mistério, e no céu inundado de estrelas estremecia o meu desejo de futuro. A única substância incompreensível é a mortalidade."

"Quando as coisas deixam de durar alteram-se. O simples facto de deixarem de ser altera-as, por mais que procuremos fazê-las estancar. Apetecia-me ter gravado fitas com as nossas conversas, filmes com os nossos passeios. Mas depois, quando olhasse para o filme, eu seria outro. Um outro a matutar numa imagem que já não era eu, que já não eras tu, apenas aura - essa aura que os filmes fabricam, luz do que já não é, do que já nunca fomos, mesmo que o tenhamos sido."

"És agora apenas uma fotografia ao lado da minha insónia. Uma memória que me fala sobretudo, como todas as memórias, daquilo que não existiu. Neste fotografia te esqueço. Meticulosamente, de cada vez que me esforço por reter-te e começo a inventar-te. Tudo em ti tem asas agora - o teu riso, os teus passos. Até nas poucas frases que recordo de ti há um restolhar de penas. E deslizo para esta solidão demasiado humana de não poder voltar a ser sozinho, como era quando tu existias, nesta mesma cidade, e eu já nem sequer pensava em ti."

"Tentativas, tentações de ampliar o conhecimento da vida, quando a vida só se deixa conhecer pela porta escura da ignorância, do desentendimento. Das energias assimétricas que nos permitiram isso a que chamamos humanidade - resíduo de resíduos."

"Organizei a minha existência por iluminações. Dessa forma, todo o amor e todas as vitórias me eram permitidas: já estava morto. Estrangulava as paixões no berço, o que teve a vantagem de as tornar fulgurantes... e a desvantagem de as tornar estéreis."

"Há quanto tempo não me arde o coração?"

"Morri tantas vezes antes de morrer - morri sempre que o amor parava, e o amor estava sempre a parar dentro de mim. Parava e crescia, comia tudo o que eu sabia. "

"Há tão pouca realidade numa vida - bocados desagarrados de história, pedras voando pelo ar, chocando na estratosfera, curto-circuitando os nossos propósitos. Amava esse curto-circuito, provocava-o. Para que a perfeição pudesse atingir.se com um só jacto de riso - louca brincadeira de um Deus trocista."

"A surdez para o sofrimento dos acasos permanece no centro da nossa tão sofisticada ciência animal."

"Esqueceste-te de me deixar esse tesouro manchado a que chamam fé. Não vejo o teu sangue no céu poente - apenas o sangue da minha infinita imanência onde tu já não estás."

"Era, às vezes, muito difícil gostar de ti. Tu fazias de propósito, gostavas que fosse cada vez mais difícil gostar de ti. Continua a ser, ou não estaria ainda no teu caminho."

"Ainda terei tempo para te esquecer? O teu riso é, sequer, esquecível?"

"A falta que me faz um céu onde te possa instalar. Mas a noite fecha o escuro sobre a minha tentativa de pensar. Talvez ainda tenhas razão, agora que nada tens."

"Talvez não haja idades, só mortos ressoando pelos canais do Tempo, mortos que, como ímans, aproximam e afastam os que ainda não morreram. Tu trazias tantos mortos na sombra do teu sorriso. Um tecido de mortos; a tua fúria de apaixonada era como uma pira funerária infinita, a tua entrega como a dos corpos às labaredas, num saber de cinzas."

"Um bocado de mim treme ainda de paixão atrás duma porta onde já não mora ninguém, onde eu nunca morei. Mas eu não sabia. E neste noante já nada posso contra essa ignorância. Imaginas um não-corpo a implorar beijos, saliva, suor e pele?"

"Não procuro nenhum dos outros homens que amei. Talvez porque nenhum deles tenha podido guardar mais que o sabor breve do meu corpo. Amavam a novidade do nosso prazer, o meu sorriso, a minha paixão, o que eu tinha para dar."

"É esse teu amor que agora me faz falta - o sujo, quotidiano amor dos momentos maus, das frases adversas, das ausências."

"Tão efémeras, as cumplicidades radiosas. Encontros de pele, de ideias, de atmosferas, flutuando como nuvens para o paraíso do esquecimento. Acreditava que o sentido da vida estava nesses encontros. Tu roubas-me o sentido, viciei-me nesse roubo, talvez seja ainda um vício do sentido, o supremo."

"Inventavas até coisas más para me dizer, gostavas de me ver perdida, sem resposta. Mas nunca tocaste no coração da minha fraqueza - nunca me disseste: «Tu também mentes e falhas, tu também trais e foges, tu também não és perfeita.»"

"Dei-me a tudo o que tu amavas e fiz de conta que era inocente, ou, pelo menos, perversa, para não te perder. Dei-me depois ao ressentimento de não te ter, à maledicência de ti, por não saber ser-te indiferente. Dou-te agora também a minha morte."

"Estou cansado de ti. Cansado de estar cansado de ti. Cansavas-me muito - não paravas de ser, existias demasiado em tudo, solicitavas-me a todo o momento."

"Claro que a amava. Talvez lhe dedicasse um amor semelhante ao que ela tinha por mim; uma embriaguez de auto-complacência."

"A tua alegria era um vírus incurável. Refilavas muito e espalhavas pó de ouro em tudo o que tocavas. Em contrapartida, eras temperamental e chorosa, hiper-sensível. E tinhas uma excessiva tendência para a vingança que acabou por se me colar à pele. Mas até aquilo a que eu mais resistia em ti se tornou carne da minha carne. Adoptei-te amores e ódios. Nunca me cansei de ti; cansei-me apenas do teu cansaço de ti mesma."

"Terei saudades de ti, ou da inocência que eu tinha quando te conheci? O sofrimento antecipa o prazer da morte, dizem os vivos, para dizer alguma coisa, enquanto a face inexorável se aproxima. E a dor vai despedindo as pessoas de si mesmas."

"Não posso encostar a minha mão ao teu rosto agora - e já nada sei do que pensas. Se ao menos olhasses para o céu - se nos teus olhos se ateasse a minha lonjura."

"Um dia quase saíste do meu coração."

"Só vivendo sobre a mudança se podia evitar a dor, só contornando a monstruosa perfeição do tempo se podia vencê-lo. Assim pensava, e enganei-me, porque o tempo não é pensável. Concentrei-me em deixar de ser para poder ser tudo, em esquecer para dominar a existência. Eu sou o tempo; sou nada, o nada veloz e imoldável que molda o corpo do tempo. Estou esgotado de correr contra a dor, contra a memória, contra a infância, contra o ódio e o amor. Criei uma meta de tranquilidade que se afasta tanto mais quanto mais eu corro para ela. Não há paz no instante, e eu vivo de instante para instante. Começo a temer que a paz se alimente do sangue da paixão que abjurei."

"Ensina-me a sofrer. Ensina-me uma dor que não passe, que possa fulgir no sulco das lágrimas quando as lágrimas tiverem secado, que possa deixar um lastro sobre a mesa em que a minha cabeça pousou, desesperada. Ensina-me a mansidão desse desespero onde fervem as alegrias passadas e futuras, o esplendor do êxtase mortal. Ensina-me a tua morte."

"A opacidade do mal é interior. Um muro desconhecido dentro do coração. Nunca vemos o mal que fazemos, só o mal que nos fazem se torna claro."

"Nesse tempo, o futuro era o que excedia a imaginação. Agora, o futuro não existe; o tempo foi substituído pelo espaço onde tudo o que foi converge com tudo o que será. A isto se chama ser contemporâneo. Viver na presunção pós-moderna do presente infinito, entender tudo sem saber a fundo de nada."

"Os seres que criáramos precisavam de nos matar para sobreviver. E nós deixámo-nos matar, porque está na natureza do amor estilhaçar-se sem ruído, desfazer-se em vidros e pesar-nos no lugar do coração até que a morte o restaure."

"Tu não querias mudar o mundo; querias um mundo perfeito em que os afectos fossem sólidos como casa. Mas também as casas morrem. Que farias, quando descobrisses que o mundo nunca muda, ou pelo menos não muda como tu queres?"

"O azul do céu muda para rosa, laranja, depois será negro outra vez. É a esta hora dilacerante, a hora a que os mortos voltam a cheirar a vivos para ficarem um pouco mais mortos. Fazes-me falta. Vejo-te passar diante deste café, na esquina da minha rua, onde nunca estive contigo. A esta hora vejo-te muitas vezes. Há tantas raparigas parecidas contigo, e nenhuma delas és tu. Vejo-te também no espelho ao meu lado, dentro dos meus olhos, que parecem teus, até nesse jeito de procurarem os espelhos."

"Encosto-me à porta da casa onde deixei um dia a minha alma morta, julgando que se tratava apenas de pele. A porta da casa onde umas cem vezes o amor me abraçou a bom recato, disfarçado de sexo. Ele está lá, deitado no chão onde começou a matar-me, muitos anos antes da minha morte."

"Amei-te mal. Não fui tudo o que sonhavas de mim. Se ao menos tivesses levado o meu mau amor contigo. Mas insistes em ficar comigo, em atacar-me com os dentes cerrados da loucura. O teu silêncio esmaga-me."

"Há cem milhões de estrelas, só na nossa galáxia. E em todas elas o teu olhar existe, cintilação fria da mentira de mim. Afastei-me de ti porque éramos imortais; voltaríamos sempre um ao outro."