Em português 'Viagem ao mundo da droga'. Este livro é a autobiografia, na primeira pessoa, de Charles Duchaussois, um jovem francês, e o seu mergulho no mundo da droga. Começou como traficante, mas cedo deu o salto para usuário. Passando por cidades como Istambul, Bombain, Catmandu, Charles vai fazendo a sua jornada por um oásis de droga, afundando cada vez mais nesse mundo. A história conta pormenorizadamente as experiências com as várias drogas que experimentou ao longo desta sua aventura, as peripécias porque passou, as profissões mais loucas que realizou para se manter a ele e ao seu vício, que vão desde colheita de haxixe a 'médico' e 'cirurgião', até se tornar, sem reparar um 'Johnny Junkie'. Aqui podemos ver todo o seu percurso, até à degradação total, física e moral de Charles, assim como da sua louca recuperação nunca total, desde a ida para as montanhas à encarceração.
"Nunca um consumidor foi tão longe e, salvo in extremis, sobreviveu para relatar a infernal viagem ao mundo das drogas. Esta obra, já um clássico, é um relato apaixonante e simultaneamente arrepiante da extrema miséria a que o consumo de drogas pode conduzir. Um sério aviso a todos os que são «espicaçados» pela curiosidade." <-- Um amigo ofereceu-me este livro por esta mesma razão, e pelo menos no meu caso funcionou. Estabeleci limites inquebráveis, e cheguei a oferecê-lo a outra pessoa, que me pareceu estar a perder-se. Não sei se funcionou. Conheço pessoas que conseguiram abrir os olhos e verem-se numa situação lastimável, conheço outras que não e nunca vão ver. De qualquer modo, considero leitura obrigatória para todos que têm intenção de dar um passo nesta direcção, se o querem fazer, penso que devam fazê-lo informadamente, e esta é uma fonte realística e segura.
Aqui fica um excerto, nomeadamente, do Johnny Junkie:
Meto-me
pela escada de velhos degraus arruinados e, no primeiro andar, entro num quarto
com cerca de quatro metros por cinco. Como chiqueiro, raramente vi melhor. No
tecto, vigas enegrecidas. No chão, coberto de poeira e de detritos duvidosos,
um soalho rudimentar. Naturalmente, as paredes são de adobe. Das quatro
vidraças da janela, três não existem e a quarta é atravessada pelo tubo de
ferro de um fogão de serradura. Não há camas, nem mesmo tarimbas. A toda a
volta do quarto, enxergas de serapilheira com um imundo cobertor árabe. Todos
bizarramente recortados. Em breve saberia porquê. Aqui e além, sacos, bagagem.
O
ar é pesado, impregnado de um cheiro a suor sujo e a urina, um pouco como num
jardim zoológico. E por sobre tudo isto um vago fundo de incenso e de haxixe.
É
então que o meu olhar, habituando-se a pouco e pouco à obscuridade, descobre
alguém no canto mais obscuro do quarto.
Uma
interminável forma deitada. É um rapaz, um europeu esquelético, barbudo, com os
cabelos compridos e ondulados. Tem os pés nus e muito sujos. Nas pernas, umas
calças de fazenda que devem ter sido brancas e, por cima delas, uma camisa
larga, também’ branca, sem colarinho, com grandes mangas muito largas.
Atiro
um bom-dia ao acaso. Não tenho resposta. Aproximo-me. O rapaz lança-me um olhar
distraído e sorri vagamente. Tenho a impressão de que mal me viu. Aliás, tem
outra coisa a fazer, e assisto a uma estranha operação.
Apoiando-se
num cotovelo e tossindo com uma tosse seca e rápida, tira uma seringa do saco,
depois uma pequena caixa de cartão, género produtos farmacêuticos. No soalho, a
seu lado, põe a seringa com a agulha já pronta. Sem se preocupar absolutamente
nada com a minha presença, abre a caixa, tira dela um tubo, destapa-o e deixa
cair na concha da mão cinco ou seis pequenos comprimidos redondos e brancos que
põe também no chão, ao lado da seringa. Rebusca no saco, tira dele um pedaço de
papel de jornal e coloca-o ao lado dos comprimidos, que passa para cima do
papel. Agarra depois num copo meio estalado, e, com pequenos golpes, pulveriza
os comprimidos a um por um, até os reduzir a poeira muito fina.
Observo-o,
fascinado. Inclino-me um pouco e leio na caixa esta palavra: Metedrine. Sei que
se trata de um poderoso excitante, género maxiton.
Mas
o drogado, pela primeira vez, parece aperceber-se da minha presença. Estende-me
o copo e, num inglês perfeito, pede-me que deite nele dois dedos de água.
-
Onde? - digo eu circundando o olhar pelo quarto.
-
Na torneira, ao cimo da escada - explica-me ele.
Vou
ao patamar e num canto, ao lado de um buraco donde sai um odor de latrina, vejo
uma velha torneira de cobre manchada de verde acinzentado e que goteja. Deito
no copo a água que o outro pediu.
-
Thanks (obrigado) - diz-me o drogado
com um sorriso fugitivo.
Dobra
habilmente o papel de jornal em goteira e faz correr o pó branco para o copo.
Com o dedo agita a mistura por um momento.
Pega na seringa e aspira tudo através de um algodão. Depois tira ainda do saco
um cinto, arregaça a manga esquerda da camisa, enrola o cinto em torno do que
lhe resta de bicípete, um pouco acima do cotovelo. Aperta.
Como
não o consegue, faz-me sinal para o ajudar.
-
Aperta, ali, está bem? - Pede-me ele.
Aperto.
As veias fazem saliência, dilatadas por pequenas hérnias, com pontos negros de
sangue seco um pouco por toda a parte, e manchas azuis debaixo da pele.
Espeta
a agulha a direito, sem hesitar. Retira um pouco o pistão e entra na seringa um
pouco de sangue vermelho.
Com
um ar satisfeito, o tipo injecta então toda a mistura, arruma à pressa os seus
utensílios e volta a deitar-se, de lado contra a parede.
Já
não se mexe.
(...)
A
rapariga sorri-me e sinto-me encorajado. Mostro-lhe o drogado, que ainda está
na mesma posição em que o deixei.
-
Talvez esteja doente? - digo eu, sempre em inglês, porque toda esta gente
parece não saber falar outra língua senão o inglês.
A
rapariga levanta os ombros.
-
Johnny? - diz ela rindo. - Há três meses que não se mexe.
-
Três meses?
-
Sim...
A
coisa não parece emocioná-la. Oscila sobre as nádegas e cantarola, olhando para
o tipo:
-
Johnny Junkie, Johnny Junkie.
Não
perguntei o que quer dizer Junkie mas depressa sei o que é; é o nome que se dá
aos drogados no último grau, aos que já não podem escolher senão entre a porta
do hospital e a porta do cemitério.
Um
nome que também eu havia de ouvir murmurar à minha passagem, numa noite de
loucura inimaginável, em Catmandu...
E o prefácio, muito conhecido, deste livro:
"Flash,
em inglês, quer dizer: relâmpago.
Para
um drogado significa: espasmo.
O
flash é o que se passa no corpo do viciado quando a droga entra nas suas veias,
injectada pelo pistão da seringa.
O
que tem a violência do relâmpago e no espasmo amoroso.
Um
dia ofereci a uma rapariga um pouco desse pó pegajoso, um tanto amarelado, que
escorrega na palma da mão como hesitante, e que é a heroína, o «cavalo».
Essa
rapariga estava a precisar dele.
Chorava,
torcendo as mãos, enquanto eu lhe preparava a injecção e suavemente, com
palavras de ternura, procurava acalmá-la.
Apliquei
o garrote no braço, piquei a veia saliente na prega do cotovelo e injectei o líquido
formado pela solução do pó em água destilada.
Quanto
mais líquido entrava nas veias mais a rapariga se dobrava para trás, mais os
seus olhos se ensombreciam, mais vermelhas se lhe tornavam as faces, mais ela
arquejava.
Por
fim deixou-se cair no leito, gemendo de prazer. Pouco depois, acalmada, feliz,
ficou adormecida. Exactamente como depois do amor.
Tivera
o seu flash.
E
agora havia «partido», «viajava», era défonse.
Injectei-me
então por minha vez e, por minha vez, tive o meu flash, «viajei» e fui défonse.
Só a injecção - a piquouze, o shoot - é que dá o flash.
é
por isso que todo o drogado, mais tarde ou mais cedo, chega fatalmente à
injecção.
E
torna-se um junkie."
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