segunda-feira, 21 de maio de 2012

'A insustentável leveza do ser', Milan Kundera

Encontrei algumas citações relativas ao conteúdo desta obra e resolvi hoje lê-la. Extremamente cativante desde o início, de fácil leitura e bastante interessante. É daqueles livros que faz pensar. Incide sobre temas como a poligamia, a dualidade entre o ser carnal e o ser espiritual e as várias formas de vivenciar estas diferenças analisadas de um modo inteligente e atrativo. Não dá muito enfase às descrições, e as personagens vão sendo retratadas ao longo da obra de acordo com as questões a serem analisadas. Mais que um romance, mais que retratos de relacionamentos minados por incompatibilidades, o individualismo e os modos de pensar tão diferentes, os opostos que se atraem, trata-se de uma obra filosófica que ao invés de criar ilusões e finais perfeitos se dedica à análise dessas diferenças e às suas consequências.
Além disso, faz referência aos problemas sociais e políticos da época, sobretudo do totalitarismo e do comunismo, nomeadamente na República Checa e na URSS. O estilo de escrita, irónico e ligeiramente rebelde têm o seu quê de sedutor. Gostei bastante e devo dizer que ganhou o seu lugar no pódio dos meus livros favoritos.

Deixo algumas das citações que mais gostei:

"Não há forma nenhuma de se verificar qual das decisões é melhor porque não há comparação possível. Tudo se vive imediatamente pela primeira vez sem preparação. Como se um actor entrasse em cena sem nunca ter ensaiado. Mas o que vale a vida se o primeiro ensaio da vida já é a própria vida? É o que faz com que a vida pareça sempre um esquisso. Mas nem mesmo 'esquisso' é a palavra certa, porque um esquisso é sempre um esboço de alguma coisa, a preparação de um quadro, enquanto o esquisso que a nossa vida é, não é esquiço de nada, é um esboço sem quadro."

"Ao contrário de Parmenides, parece que Beethoven considerava o peso como algo de positivo. Der schwer gefasste Entschluss, a decisão gravemente pesada está associada à voz do destino (Es muss sein!); o peso, a necessidade e o valor são três noções intima e profundamente ligadas: só é grave o que é necessário, só tem valor o que pesa."

"É natural que quem quer elevar-se sempre mais, um dia, acabe por ter vertigens. O que são vertigens? Medo de cair? Mas então porque temos vertigens num miradouro protegido por um parapeito? As vertigens não são o medo de cair. É a voz do vazio por baixo de nós que nos enfeitiça e atrai, o desejo de cair do qual, logo a seguir, nos protegemos com pavor."

"Sabemos já qual é a resposta para estas perguntas: quando Sabina traíra os pais, a vida abrira-se à sua frente como um longo caminho de traições e cada nova traição a atrai como um vício e como uma vitória. Não quer ficar na fila e não fica mesmo! Não ficará para sempre na mesma fila com as mesmas pessoas e com as mesmas palavras!"

"A merda é um problema teológico mais difícil que o mal. Se ainda recentemente, a palavra merda era substituída nos livros pelos três pontinhos, não era seguramente uma questão de moral. Apesar de tudo, ninguém pode pretender que a merda seja imoral! O desacordo com a merda é metafísico. O instante da defecção é a prova quotidiana do carácter inaceitável da criação. Pás duas uma: ou a merda é aceitável (então porque é que se fecham na casa de banho?) ou a maneira como nos criaram é que é inadmissível.
Daqui se infere que o acordo categórico com o ser tem como ideal estético um mundo onde a merda é negada e onde todos se comportam como se ela não existisse. Este ideal estético chama-se kitsch."

"O kitsch faz-nos vir duas lágrimas de emoção aos olhos, uma logo a seguir à outra. A primeira diz: Que coisa bonita, crianças a correr num relvado! A segunda diz: Que coisa bonita, comovermo-nos como toda a humanidade se comove quando há crianças a correr num relvado! 
Só esta segunda lágrima é que faz com que o kitsch seja o kitsch.
A fraternidade de todos os homens nunca poderá repousar senão no kitsch."

"No reino do kitsch totalitário, as respostas já estão sempre preparadas e excluem toda a pergunta que seja realmente nova. Donde se infere que o verdadeiro adversário do kitsch totalitário é o homem que pergunta. A interrogação é como uma faca que rasga a tela do cenário para permitir que se veja o que está atrás."

"O que restou dos moribundos do Cambodja?
Uma grande fotografia da estrela americana com um bebé amarelo nos braços.
O que restou de Tomas?
Uma inscrição: Ele queria o reino de Deus sobre a Terra.
O que restou de Beethoven?
Um homem carrancudo com uma cabeleira inverossímil a pronunciar solenemente um 'Es muss sein!'
O que restou de Franz?
Uma inscrição: Após um longo desvario, o regresso.
E sempre assim por diante, sempre assim por diante. Antes de nos esquecerem, hão-de transformar-nos em kitsch."

"Logo no começo do Génesis, está escrito que Deus criou o homem para que ele reinasse sobre os pássaros, os peixes e o gado. É claro que o Génesis é obra do homem, e não do cavalo. Ninguém pode ter a certeza absoluta de que Deus realmente cria que o homem reinasse sobre todas as outras criaturas. O mais provável é que o homem tenha inventado Deus para santificar o seu poder sobre a vaca e o cavalo. (...) É um direito que só nos parece natural porque quem está no topo da hierarquia somos nós. Bastava que entrasse mais outro parceiro no jogo, por exemplo um visitante vindo de outro planeta cujo Deus tivesse dito 'Tu reinarás sobre todas as criaturas de todas as outras estrelas' para que toda a evidência do Génesis fosse logo posta em questão. Talvez depois de um marciano o ter atrelado a uma charrua ou enquanto estivesse a assar no espeto de um habitante da Via Láctea, o homem se lembrasse das costeletas de vitela e fosse pedir (tarde de mais) desculpas à vaca."

"Faz mais ou menos o seguinte raciocínio: Não há mérito nenhum em portarmo-nos bem com os nossos semelhantes. Tereza é forçada a ser correcta com os outros habitantes da aldeia, porque senão deixaria de poder lá viver, e, até com Tomas porque precisa dele. Será sempre impossível determinar com um mínimo de segurança em que medida é que as nossas relações com outrém resultam dos nossos sentimentos, do nosso amor, do nosso desamor, da nossa benevolência ou do nosso ódio, e em que medida é que estão previamente condicionadas pelas relações de forças existentes entre os indivíduos.
A verdadeira bondade do homem só pode manifestar-se em toda a sua pureza e em toda a sua liberdade com aqueles que não representam força nenhuma. O verdadeiro teste moral da humanidade são as relações com quem se encontra à sua mercê."

"A nostalgia do Paraíso é o desejo que o homem tem de não ser homem."

"...o amor que a une a Karenine é melhor do que o amor que existe entre ela e Tomás. (...) É um amor desinteressado: Tereza não quer nada de Karenine. Nem sequer exige que ele a ame. Nunca se atormentou com as perguntas que torturam os homens e as mulheres: Gostará ele de mim? Já terá amado alguém mais do que me ama a mim? Amar-me-à mais a mim do que eu o amo? Todas estas interrogações que questionam o amor, que o medem, o perscutam, o inspeccionam, não se arriscarão a matá-lo na casca? Se somos incapazes de amar, talvez seja por desejarmos sermos amados, ou seja, por querermos alguma coisa do outro (o seu amor), em vez de chegarmos junto dele sem reivindicações e não queiramos senão a sua presença.
E ainda há mais uma coisa: Tereza aceitou Karenine tal como ele é, não tentou modificá-lo, deu a sua anuência prévia ao seu universo de cão, não quer confiscá-lho..."

"O horror é um choque, um instante de absoluta cegueira. O horror é totalmente desprovido de beleza. Não se vê senão a luz violenta do acontecimento desconhecido que se espera. A tristeza, pelo contrário, implica que se saiba."

"- Missão? Qual missão? Missão é uma palavra parva. Eu não tenho missão nenhuma. Ninguém tem missão nenhuma. E é um alívio enorme uma pessoa perceber que é livre."


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