quarta-feira, 27 de outubro de 2010

'Os filhos da droga', Christiane F.

Também conhecido por 'Eu, Christiane F., treze anos, drogada e prostituída'. Esta história é marcante e profundamente triste, penso que seja porque é o tipo de coisa que poderia acontecer a qualquer um de nós dadas as condições em que ela se encontrava. Estamos na Alemanha pós-guerra. Christiane F. é uma menina habituada à vida do campo que se vê obrigada a mudar-se para a cidade. O negócio do pai não corre bem, e além de terem de mudar-se para um complexo industrial, que para alguém como Christiane é análogo a um pesadelo, o pai começa a bater em toda a gente em casa. Sujeita a violência em casa, e com dificuldades em adaptar-se, Christiane procura um escape, acabando por começar a frequentar discotecas e associar-se a más companhias. De um cigarro e do álcool passa para o haxixe, seguido pelo LSD, até entrar na heroína e dar o grande salto para o que seria o inferno do resto da sua vida.
O livro fala da sua história, assim como a dos seus amigos drogados, uma das amigas tendo sido a mais jovem vítima da heroína, tendo falecido por overdose, com apenas 13 anos. Dos seus amigos, grande parte deles morreram, Christiane e o seu namorado, Detlef, com quem se prostituía no Zoo, sobreviveram. Detlef conseguiu recompor a sua vida, tendo deixado as drogas em 1980, é hoje casado, tem uma família e uma vida estável. Christiane, por outro lado, apesar de ter passado algumas alturas sem a heroína, voltou sempre a encarreirar no vício, até hoje. O seu caso é considerado como irreversível, tem um filho que de momento está numa instituição.
É tristemente fascinante ver como esta história se escreveu desta forma devido a um único acontecimento decisivo. Se Christiane nunca tivesse ido para Berlim, nunca teria embarcado nesta jornada auto-destrutiva. Se tivesse admitido tudo e ficado em casa da avó na fase inicial do seu vicio, provavelmente teria conseguido largá-lo. É a falta de coragem, que às vezes se revela a nossa perdição, e quando nos damos conta disso... Já não podemos voltar atrás...


"Era  uma  excitação  louca.  Minha  mãe  passava  os seus dias a empacotar, a encher caixotes e malas. Eu percebia que íamos começar uma vida nova. Acabava  de  completar  seis  anos,  e  depois  da mudança  entraria  para  a  escola  primária.  Enquanto minha  mãe,  cada  vez  mais  nervosa,  se  dava  ao trabalho  de  empacotar  tudo,  eu  ficava  quase  o  dia inteiro  na  casa  de  Võlkel,  o  fazendeiro.  Esperava  as vacas    voltarem    para    o    estábulo    para    serem 
ordenhadas,  dava  comida  aos  porcos  e  às  galinhas, rolava no feno com meus amigos e passeava com os gatinhos no colo. Um verão maravilhoso, o primeiro do qual tive plena consciência. Sabia  que  logo  iríamos  partir  para  muito  longe, para  viver  em  uma  grande  cidade  chamada  Berlim. Minha  mãe  partiu  antes  de  nós  para  arrumar  o apartamento.    Algumas    semanas    depois,    minha irmãzinha,  meu  pai  e  eu  fomos  de  avião  ao  seu 
encontro.  Para  nós,  as  crianças,  foi  o  primeiro  vôo. Tudo era apaixonante. Meus    pais    nos    tinham    contado    histórias maravilhosas.  Nós  iríamos  morar  em  um  imenso apartamento  de  seis  cômodos.  Eles  ganhariam  muito dinheiro. Minha mãe disse que teríamos um quarto só para  nós.  Iríamos  comprar  móveis  sensacionais.  Ela descrevera com detalhes a decoração de nosso quarto. Eu me lembro porque, durante toda a minha infância, 
nunca  deixei  de  pensar  neles.  E,  mais  os  anos passavam, mais minha imaginação os embelezava. 
E  também  não  me  esqueci  de  como  era  o apartamento, quando lá chegamos.  Deve  ser  porque, de  cara,  me  provocou  um  verdadeiro  sentimento  de horror. Era tão grande e tão vazio que eu tinha medo de me perder. Quando se falava um pouco mais alto, as vozes ressoavam de maneira inquietante. Apenas  três  cômodos  estavam  mobiliados.  No quarto das crianças, duas camas e um velho armário de   cozinha   onde   minha   mãe   guardava   nossos 
brinquedos. No outro quarto, a cama de meus pais. No terceiro  cômodo,  o  maior,  um  velho  divã  e  algumas cadeiras.  Assim  era  nosso  apartamento  no  bairro  de Kreuzberg, na marginal Paul Lincke. 

Um  dia,  o  divã,  as  camas,  o  armário  foram colocados em um caminhão que os transportou até um prédio   do   conjunto   residencial   Gropius.   Ali   nos instalamos  em  um  apartamento  de  dois  cômodos  e meio, no décimo primeiro andar. O meio cômodo era o quarto  das  crianças.  Todas  as  coisas  bonitas  de  que minha mãe nos falara jamais caberiam ali. O  conjunto  Gropius  abriga,  em  suas  torres, quarenta  e  cinco  mil  pessoas.  Entre  os  prédios, gramados  e  centros  comerciais.  De  longe,  tudo  isso tem um ar de novo, tudo parece muito bem-cuidado, mas, quando se está dentro, entre os prédios, fede a xixi  e  a  cocô.  É  por  causa  de  todos  os  cachorros  e crianças  que  vivem  nesse  conjunto.  E  no  vão  da escada, fede ainda mais. Meus pais ficavam furiosos, diziam que era culpa dos filhos dos proletários, que eram eles que sujavam as   escadas.   Mas   não   era   culpa   dos   filhos   dos proletários.  Aprendi  isso  na  primeira  vez  quando, brincando  lá  fora,  tive,  de  repente,  vontade  de  ir  ao 
banheiro. O tempo de esperar o elevador e de chegar ao décimo primeiro andar já me tinha feito mijar nas calças.  Meu  pai  me  bateu.  Depois  de  três  ou  quatro experiências do mesmo gênero — não subir a tempo e receber uma bofetada —, fiz como os outros: procurei um cantinho discreto para me agachar. Mas, como dos prédios  se  enxerga  praticamente  tudo,  o  lugar  mais seguro ainda era a escada. As  crianças  do  conjunto  me  consideravam  uma pequena retardada: não tinha os mesmos brinquedos que elas, nem a mesma pistola de água. Eu me vestia 
e  falava  de  outra  forma  e  não  conhecia  as  suas brincadeiras. Eu também não gostava delas. No  meu  vilarejo  íamos  sempre  de  bicicleta  ao bosque, até um riacho que passava sob uma pequena ponte. Aí se construíam castelos e barragens de água... Todos  juntos  ou  cada  um  por  si.  E  quando demolíamos  nossas  obras,  era  com  acordo  geral.  Era bem  divertido.  Além  disso,  ninguém  era  dono  da  lei. Cada  um  podia  sugerir  brincar  disso  ou  daquilo. Depois, conversávamos. Algumas vezes os mais velhos concordavam   com   os   mais   jovens,   e   ninguém reclamava. Era uma verdadeira democracia infantil. 
No  conjunto  Gropius  tínhamos  um  chefe.  Era  o menino mais forte e o que tinha a pistola de água mais bonita. Brincávamos sempre de bandido. O chefe dos bandidos, naturalmente, era ele. E a principal regra do jogo consistia em obedecer-lhe cegamente. Na maior parte do tempo não se brincava junto, mas  uns  contra  os  outros.  Na  verdade,  tratava-se, sobretudo,  de  um  maltratar  o  outro.  Por  exemplo, pegar  seu  brinquedo  novo  e  quebrá-lo.  A  brincadeira toda  consistia  em  humilhar  o  outro  e  obter  alguma vantagem para si mesmo. A de conquistar o poder e exibi-lo. Os mais fracos apanhavam mais. Minha irmãzinha não  era  muito  forte,  era  um  pouco  medrosa.  Eles faziam o diabo com ela, e eu não podia socorrê-la. 


Não compreendi  muito  bem  por  que  fora  tão  grave  ter entupido aquele bueiro. Na nossa cidadezinha, quando a  gente  brincava  à  beira  do  riacho,  fazíamos  muito mais do que isso e nunca ninguém nos disse nada. O que  eu  mais  ou  menos  aprendi  é  que  no  conjunto Gropius   as   únicas   brincadeiras   autorizadas   eram aquelas previstas pelos adultos. Quer dizer, brincar na areia  e  escorregar  no  tobogã.  Ter  idéias  próprias  era perigoso. 
Meu novo encontro com o zelador foi pior ainda. Olha só o meu azar. Estava passeando com Ajax e tive a idéia de colher algumas flores para minha mãe. Na cidadezinha  do  interior  eu  lhe  trazia  flores  de  quase todos os meus passeios. Entre os prédios só cresciam umas   rosinhas.   Recolhi   umas   três   ou   quatro, machucando  meus  dedos  com  os  espinhos.  Eu  ainda 
não sabia ler o que dizia a placa que proibia aquilo ou então não tinha entendido bem o que estava escrito. Compreendi  tudo  imediatamente  quando  vi  o zelador correr em minha direção, gritando, balançando os  braços  e  atravessando  o  gramado.  Apavorada, gritei: "Atenção, Ajax!" Ajax levantou as orelhas, ficou atento, os pêlos de sua nuca se eriçaram e observou o zelador com um ar perverso. Ele saiu correndo, apavorado,  pisando  uma vez mais na famosa grama. Ficou mudo até chegar à entrada  do  prédio,  onde  recomeçou  a  gritar.  Ficara contente  com  tudo  isso,  mas  escondi  as  flores,  pois percebi que, mais uma vez, fizera algo proibido. Quando  cheguei  a  casa,  o  gerente  já  havia telefonado:   segundo   ele,   eu   havia   atiçado   meu cachorro contra o zelador. Pelas flores não recebi o beijo maternal, mas uma boa surra de meu pai. 


Chegou o início das aulas. Eu estava me sentindo felicíssima por ir à escola. Meus pais tinham dito que era  preciso  ser  sempre  comportada  e  obediente  ao professor. Eu achava isso muito natural. No vilarejo as crianças respeitavam os adultos. E eu, creio, pensava que os outros também seriam obrigados a obedecer ao professor. Mas  não  foi  assim. 
(...)

Dizia a mim mesma: você não tem nada que fazer com  professores  que  só  vê  uma  hora  de  vez  em quando. Qual é essa de se cansar para lhes agradar? O importante  é  ser  aceita  por  gente  com  quem  você passa  o  dia  inteiro.  E  passei  a  modificar  todo  o  meu comportamento  na  sala  de  aula.  Não  tinha  nenhuma relação  pessoal  com  os  professores.  Aliás,  a  maioria deles  estava  pouco  ligando,  não  tinham  mesmo  autoridade  e  a  única  coisa  que  faziam  era  berrar. Aprontei  mil  e  uma.  Em  pouco  tempo,  fui  capaz  de, 
sozinha,  acabar  com  uma  aula.  Naturalmente,  por isso, passei a ser bem considerada por todos os meus colegas. 
Catava moedas no fundo das gavetas para poder comprar cigarros e ir para o canto dos fumantes. Kessi ia sempre em todos os recreios. Quando comecei a ir com  mais freqüência, senti que  ela se interessou por mim. Nós nos encontrávamos à saída da escola. Afinal, um dia, ela me convidou para ir a sua casa. Bebemos cerveja: senti uma coisa gozada na cabeça e falamos 
de  nossas  famílias.  Ela  teve  as  mesmas  merdas  de problemas que eu. Até pior...

 —  Em  primeiro  lugar,  esta  droga  é  minha, quer dizer, quase toda. Fui eu que recolhi o dinheiro. Em segundo lugar, pare de dizer besteiras: eu não vou ficar  como  você,  sei  me  controlar.  Vou  só  experimentar para ver como é, depois não toco mais nela. 

Sem  me  dar  conta,  eu  me  dividi  em  duas.  Duas pessoas  absolutamente  diferentes.  Escrevia  cartas  a mim  mesma.  Mais  precisamente,  Christiane  escrevia para  Vera.  Vera  é  o  meu  segundo  nome.  Christiane era  a  menina  de  treze  anos  que  queria  ir  à  casa  da 
avó. A menina comportada; Vera, a drogada. Tão  logo  minha  mãe  me  pôs  no  trem,  não  era 
nada  mais  que  Christiane.  E  uma  vez  na  cozinha  de minha avó, sentia-me completamente em casa, como se  nunca  tivesse  posto  os  pés  em  Berlim.  Só  de  ver minha  avó  sentada  naquela  cozinha,  com  seu  ar tranqüilo  e  confortante,  me  aquecia  o  coração.  Eu amava minha avó, e gostava de sua cozinha. Era uma verdadeira cozinha camponesa, fogo na lareira, tachos e  panelas  imensas...  sempre  um  bom  prato  cozinhando,  como  num  livro  de  gravuras.  Eu  me  sentia bem. 

Depois  comecei  a  ter  crises  de  angústia  quando me  encontrava  sozinha  à  tarde  em  minha  cama.  Via dançar   diante   de   meus   olhos   as   caras   dos freqüentadores  do  Sound,  e  pensava  que  dentro  em breve  teria  que  voltar  a  Berlim.  Sentia  um  medo terrível de Berlim. Pensava que poderia pedir à minha avó para me deixar ficar com ela, mas como dizer-lhe o  motivo,  e  o  que  diria  à  minha  mãe?  Seria  preciso confessar  tudo,  mas  eu  não  me  decidi  a  fazer  isso. Minha avó cairia dura, morta, se eu lhe contasse que sua  netinha  se  picava  com  heroína.  Era  preciso, portanto, voltar a Berlim. 

Às  vezes  amigos  de  Detlef  me  diziam:  —  Saia dessa, você é muito jovem para isso. É só se separar de Detlef que você conseguirá. Ele, de qualquer jeito, nunca conseguirá sair dessa. Não seja idiota, afaste-se dele. 
Mandava-os à merda. Separar-me de Detlef. Nem em   sonhos!   Se   ele   quisesse   se   matar   eu   o acompanharia.  Eu  nem  falava  disso  e  respondia-lhes simplesmente: — Vocês estão enganados, não somos viciados. Quando quisermos parar, paramos. 

Uma vez fora do carro, me senti muito calma e fiz uma  espécie  de  balanço:  "Eis  aí.  Você  tem  catorze anos. Há um mês você ainda era virgem. Agora você se vende". 
Depois, não pensei mais nem no cara nem no que fiz. Estava mais contente do que triste. Por causa do dinheiro.  Nunca  tivera  tanto  de  uma  só  vez.  Não  me preocupava  com  Detlef  e  nem  me  perguntava  o  que ele iria dizer. A crise começou e pensei apenas numa coisa:     minha     picada.     Tive     sorte,     encontrei imediatamente   nosso   revendedor   habitual.   Vendo aquele monte de dinheiro, ele me perguntou: — Onde você  pegou  isto?  Você  se  prostituiu?  —  Eu,  com  ar superior,  respondi:  —  Você  está  sonhando.  Eu,  fazer isso?  Prefiro  parar  de  me  picar.  Foi  meu  pai  que  me deu.  Ele,  de  repente,  se  lembrou  de  que  tem  uma filha. 


Nos  meses  que  se  seguiram,  eu,  Babsi  e  Stella discutíamos  quase  diariamente  sobre  a  questão  da nossa   honra   de   prostitutas.   Cada   uma   tentava demonstrar  a  si  mesma  e  às  outras  que  ainda  não descera ao ponto mais baixo da escala. E quando nos encontrávamos  somente  em  duas,  falávamos  mal  da terceira. 

Depois tive a impressão de estar a perder todo o meu sangue... Essa sensação durou horas. Não podia mais andar, nem falar. Cheguei sem perceber até à sala de cinema do Sound. Fiquei cinco horas numa poltrona a sentir que estava a sangrar até à morte.

À noite voltei a tomar alguns comprimidos. Um indivíduo normal morreria. Para mim, isto me permitia ao menos dormir algumas horas. Um sonho me despertou: sou um cão que sempre foi tratado bem pelos homens até ao dia em que o prenderam em um canil e o torturaram até à morte.

Achei que desta vez era o fim. Mas não era uma overdose, era só vinagre. Perdi toda a resistência e o meu corpo não me obedecia mais. Foi assim que os outros morreram. Muitas vezes, depois de uma picada, eles perdiam a consciência. E um dia eles não acordavam mais. Não sei porque tive tanto medo de morrer. De morrer só. Os drogados morrem sós. Mais frequentemente em banheiros fedorentos. Tive, então, uma verdadeira vontade de morrer. No fundo, não esperava por outra coisa. Não sabia o que estava fazendo no mundo. Antes, eu também não sabia muito bem. Mas um viciado vive para que? Para se destruir e destruir aos outros? Pensei, naquela tarde, que seria melhor que eu tivesse morrido, mesmo que fosse só pelo amor à minha mãe. De qualquer forma, não sabia mais se existia ou não..."

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