Também conhecido por 'Eu, Christiane F., treze anos, drogada e prostituída'. Esta história é marcante e profundamente triste, penso que seja porque é o tipo de coisa que poderia acontecer a qualquer um de nós dadas as condições em que ela se encontrava. Estamos na Alemanha pós-guerra. Christiane F. é uma menina habituada à vida do campo que se vê obrigada a mudar-se para a cidade. O negócio do pai não corre bem, e além de terem de mudar-se para um complexo industrial, que para alguém como Christiane é análogo a um pesadelo, o pai começa a bater em toda a gente em casa. Sujeita a violência em casa, e com dificuldades em adaptar-se, Christiane procura um escape, acabando por começar a frequentar discotecas e associar-se a más companhias. De um cigarro e do álcool passa para o haxixe, seguido pelo LSD, até entrar na heroína e dar o grande salto para o que seria o inferno do resto da sua vida.
O livro fala da sua história, assim como a dos seus amigos drogados, uma das amigas tendo sido a mais jovem vítima da heroína, tendo falecido por overdose, com apenas 13 anos. Dos seus amigos, grande parte deles morreram, Christiane e o seu namorado, Detlef, com quem se prostituía no Zoo, sobreviveram. Detlef conseguiu recompor a sua vida, tendo deixado as drogas em 1980, é hoje casado, tem uma família e uma vida estável. Christiane, por outro lado, apesar de ter passado algumas alturas sem a heroína, voltou sempre a encarreirar no vício, até hoje. O seu caso é considerado como irreversível, tem um filho que de momento está numa instituição.
É tristemente fascinante ver como esta história se escreveu desta forma devido a um único acontecimento decisivo. Se Christiane nunca tivesse ido para Berlim, nunca teria embarcado nesta jornada auto-destrutiva. Se tivesse admitido tudo e ficado em casa da avó na fase inicial do seu vicio, provavelmente teria conseguido largá-lo. É a falta de coragem, que às vezes se revela a nossa perdição, e quando nos damos conta disso... Já não podemos voltar atrás...
"Era uma excitação louca. Minha mãe passava os seus dias a empacotar, a encher caixotes e malas. Eu percebia que íamos começar uma vida nova. Acabava de completar seis anos, e depois da mudança entraria para a escola primária. Enquanto minha mãe, cada vez mais nervosa, se dava ao trabalho de empacotar tudo, eu ficava quase o dia inteiro na casa de Võlkel, o fazendeiro. Esperava as vacas voltarem para o estábulo para serem
ordenhadas, dava comida aos porcos e às galinhas, rolava no feno com meus amigos e passeava com os gatinhos no colo. Um verão maravilhoso, o primeiro do qual tive plena consciência. Sabia que logo iríamos partir para muito longe, para viver em uma grande cidade chamada Berlim. Minha mãe partiu antes de nós para arrumar o apartamento. Algumas semanas depois, minha irmãzinha, meu pai e eu fomos de avião ao seu
encontro. Para nós, as crianças, foi o primeiro vôo. Tudo era apaixonante. Meus pais nos tinham contado histórias maravilhosas. Nós iríamos morar em um imenso apartamento de seis cômodos. Eles ganhariam muito dinheiro. Minha mãe disse que teríamos um quarto só para nós. Iríamos comprar móveis sensacionais. Ela descrevera com detalhes a decoração de nosso quarto. Eu me lembro porque, durante toda a minha infância,
nunca deixei de pensar neles. E, mais os anos passavam, mais minha imaginação os embelezava.
E também não me esqueci de como era o apartamento, quando lá chegamos. Deve ser porque, de cara, me provocou um verdadeiro sentimento de horror. Era tão grande e tão vazio que eu tinha medo de me perder. Quando se falava um pouco mais alto, as vozes ressoavam de maneira inquietante. Apenas três cômodos estavam mobiliados. No quarto das crianças, duas camas e um velho armário de cozinha onde minha mãe guardava nossos
brinquedos. No outro quarto, a cama de meus pais. No terceiro cômodo, o maior, um velho divã e algumas cadeiras. Assim era nosso apartamento no bairro de Kreuzberg, na marginal Paul Lincke.
Um dia, o divã, as camas, o armário foram colocados em um caminhão que os transportou até um prédio do conjunto residencial Gropius. Ali nos instalamos em um apartamento de dois cômodos e meio, no décimo primeiro andar. O meio cômodo era o quarto das crianças. Todas as coisas bonitas de que minha mãe nos falara jamais caberiam ali. O conjunto Gropius abriga, em suas torres, quarenta e cinco mil pessoas. Entre os prédios, gramados e centros comerciais. De longe, tudo isso tem um ar de novo, tudo parece muito bem-cuidado, mas, quando se está dentro, entre os prédios, fede a xixi e a cocô. É por causa de todos os cachorros e crianças que vivem nesse conjunto. E no vão da escada, fede ainda mais. Meus pais ficavam furiosos, diziam que era culpa dos filhos dos proletários, que eram eles que sujavam as escadas. Mas não era culpa dos filhos dos proletários. Aprendi isso na primeira vez quando, brincando lá fora, tive, de repente, vontade de ir ao
banheiro. O tempo de esperar o elevador e de chegar ao décimo primeiro andar já me tinha feito mijar nas calças. Meu pai me bateu. Depois de três ou quatro experiências do mesmo gênero — não subir a tempo e receber uma bofetada —, fiz como os outros: procurei um cantinho discreto para me agachar. Mas, como dos prédios se enxerga praticamente tudo, o lugar mais seguro ainda era a escada. As crianças do conjunto me consideravam uma pequena retardada: não tinha os mesmos brinquedos que elas, nem a mesma pistola de água. Eu me vestia
e falava de outra forma e não conhecia as suas brincadeiras. Eu também não gostava delas. No meu vilarejo íamos sempre de bicicleta ao bosque, até um riacho que passava sob uma pequena ponte. Aí se construíam castelos e barragens de água... Todos juntos ou cada um por si. E quando demolíamos nossas obras, era com acordo geral. Era bem divertido. Além disso, ninguém era dono da lei. Cada um podia sugerir brincar disso ou daquilo. Depois, conversávamos. Algumas vezes os mais velhos concordavam com os mais jovens, e ninguém reclamava. Era uma verdadeira democracia infantil.
No conjunto Gropius tínhamos um chefe. Era o menino mais forte e o que tinha a pistola de água mais bonita. Brincávamos sempre de bandido. O chefe dos bandidos, naturalmente, era ele. E a principal regra do jogo consistia em obedecer-lhe cegamente. Na maior parte do tempo não se brincava junto, mas uns contra os outros. Na verdade, tratava-se, sobretudo, de um maltratar o outro. Por exemplo, pegar seu brinquedo novo e quebrá-lo. A brincadeira toda consistia em humilhar o outro e obter alguma vantagem para si mesmo. A de conquistar o poder e exibi-lo. Os mais fracos apanhavam mais. Minha irmãzinha não era muito forte, era um pouco medrosa. Eles faziam o diabo com ela, e eu não podia socorrê-la.
Não compreendi muito bem por que fora tão grave ter entupido aquele bueiro. Na nossa cidadezinha, quando a gente brincava à beira do riacho, fazíamos muito mais do que isso e nunca ninguém nos disse nada. O que eu mais ou menos aprendi é que no conjunto Gropius as únicas brincadeiras autorizadas eram aquelas previstas pelos adultos. Quer dizer, brincar na areia e escorregar no tobogã. Ter idéias próprias era perigoso.
Meu novo encontro com o zelador foi pior ainda. Olha só o meu azar. Estava passeando com Ajax e tive a idéia de colher algumas flores para minha mãe. Na cidadezinha do interior eu lhe trazia flores de quase todos os meus passeios. Entre os prédios só cresciam umas rosinhas. Recolhi umas três ou quatro, machucando meus dedos com os espinhos. Eu ainda
não sabia ler o que dizia a placa que proibia aquilo ou então não tinha entendido bem o que estava escrito. Compreendi tudo imediatamente quando vi o zelador correr em minha direção, gritando, balançando os braços e atravessando o gramado. Apavorada, gritei: "Atenção, Ajax!" Ajax levantou as orelhas, ficou atento, os pêlos de sua nuca se eriçaram e observou o zelador com um ar perverso. Ele saiu correndo, apavorado, pisando uma vez mais na famosa grama. Ficou mudo até chegar à entrada do prédio, onde recomeçou a gritar. Ficara contente com tudo isso, mas escondi as flores, pois percebi que, mais uma vez, fizera algo proibido. Quando cheguei a casa, o gerente já havia telefonado: segundo ele, eu havia atiçado meu cachorro contra o zelador. Pelas flores não recebi o beijo maternal, mas uma boa surra de meu pai.
Chegou o início das aulas. Eu estava me sentindo felicíssima por ir à escola. Meus pais tinham dito que era preciso ser sempre comportada e obediente ao professor. Eu achava isso muito natural. No vilarejo as crianças respeitavam os adultos. E eu, creio, pensava que os outros também seriam obrigados a obedecer ao professor. Mas não foi assim.
(...)
Dizia a mim mesma: você não tem nada que fazer com professores que só vê uma hora de vez em quando. Qual é essa de se cansar para lhes agradar? O importante é ser aceita por gente com quem você passa o dia inteiro. E passei a modificar todo o meu comportamento na sala de aula. Não tinha nenhuma relação pessoal com os professores. Aliás, a maioria deles estava pouco ligando, não tinham mesmo autoridade e a única coisa que faziam era berrar. Aprontei mil e uma. Em pouco tempo, fui capaz de,
sozinha, acabar com uma aula. Naturalmente, por isso, passei a ser bem considerada por todos os meus colegas.
Catava moedas no fundo das gavetas para poder comprar cigarros e ir para o canto dos fumantes. Kessi ia sempre em todos os recreios. Quando comecei a ir com mais freqüência, senti que ela se interessou por mim. Nós nos encontrávamos à saída da escola. Afinal, um dia, ela me convidou para ir a sua casa. Bebemos cerveja: senti uma coisa gozada na cabeça e falamos
de nossas famílias. Ela teve as mesmas merdas de problemas que eu. Até pior...
— Em primeiro lugar, esta droga é minha, quer dizer, quase toda. Fui eu que recolhi o dinheiro. Em segundo lugar, pare de dizer besteiras: eu não vou ficar como você, sei me controlar. Vou só experimentar para ver como é, depois não toco mais nela.
Sem me dar conta, eu me dividi em duas. Duas pessoas absolutamente diferentes. Escrevia cartas a mim mesma. Mais precisamente, Christiane escrevia para Vera. Vera é o meu segundo nome. Christiane era a menina de treze anos que queria ir à casa da
avó. A menina comportada; Vera, a drogada. Tão logo minha mãe me pôs no trem, não era
nada mais que Christiane. E uma vez na cozinha de minha avó, sentia-me completamente em casa, como se nunca tivesse posto os pés em Berlim. Só de ver minha avó sentada naquela cozinha, com seu ar tranqüilo e confortante, me aquecia o coração. Eu amava minha avó, e gostava de sua cozinha. Era uma verdadeira cozinha camponesa, fogo na lareira, tachos e panelas imensas... sempre um bom prato cozinhando, como num livro de gravuras. Eu me sentia bem.
Depois comecei a ter crises de angústia quando me encontrava sozinha à tarde em minha cama. Via dançar diante de meus olhos as caras dos freqüentadores do Sound, e pensava que dentro em breve teria que voltar a Berlim. Sentia um medo terrível de Berlim. Pensava que poderia pedir à minha avó para me deixar ficar com ela, mas como dizer-lhe o motivo, e o que diria à minha mãe? Seria preciso confessar tudo, mas eu não me decidi a fazer isso. Minha avó cairia dura, morta, se eu lhe contasse que sua netinha se picava com heroína. Era preciso, portanto, voltar a Berlim.
Às vezes amigos de Detlef me diziam: — Saia dessa, você é muito jovem para isso. É só se separar de Detlef que você conseguirá. Ele, de qualquer jeito, nunca conseguirá sair dessa. Não seja idiota, afaste-se dele.
Mandava-os à merda. Separar-me de Detlef. Nem em sonhos! Se ele quisesse se matar eu o acompanharia. Eu nem falava disso e respondia-lhes simplesmente: — Vocês estão enganados, não somos viciados. Quando quisermos parar, paramos.
Uma vez fora do carro, me senti muito calma e fiz uma espécie de balanço: "Eis aí. Você tem catorze anos. Há um mês você ainda era virgem. Agora você se vende".
Depois, não pensei mais nem no cara nem no que fiz. Estava mais contente do que triste. Por causa do dinheiro. Nunca tivera tanto de uma só vez. Não me preocupava com Detlef e nem me perguntava o que ele iria dizer. A crise começou e pensei apenas numa coisa: minha picada. Tive sorte, encontrei imediatamente nosso revendedor habitual. Vendo aquele monte de dinheiro, ele me perguntou: — Onde você pegou isto? Você se prostituiu? — Eu, com ar superior, respondi: — Você está sonhando. Eu, fazer isso? Prefiro parar de me picar. Foi meu pai que me deu. Ele, de repente, se lembrou de que tem uma filha.
Nos meses que se seguiram, eu, Babsi e Stella discutíamos quase diariamente sobre a questão da nossa honra de prostitutas. Cada uma tentava demonstrar a si mesma e às outras que ainda não descera ao ponto mais baixo da escala. E quando nos encontrávamos somente em duas, falávamos mal da terceira.
Depois tive a impressão de estar a perder todo o meu sangue... Essa sensação durou horas. Não podia mais andar, nem falar. Cheguei sem perceber até à sala de cinema do Sound. Fiquei cinco horas numa poltrona a sentir que estava a sangrar até à morte.
À noite voltei a tomar alguns comprimidos. Um indivíduo normal morreria. Para mim, isto me permitia ao menos dormir algumas horas. Um sonho me despertou: sou um cão que sempre foi tratado bem pelos homens até ao dia em que o prenderam em um canil e o torturaram até à morte.
Achei que desta vez era o fim. Mas não era uma overdose, era só vinagre. Perdi toda a resistência e o meu corpo não me obedecia mais. Foi assim que os outros morreram. Muitas vezes, depois de uma picada, eles perdiam a consciência. E um dia eles não acordavam mais. Não sei porque tive tanto medo de morrer. De morrer só. Os drogados morrem sós. Mais frequentemente em banheiros fedorentos. Tive, então, uma verdadeira vontade de morrer. No fundo, não esperava por outra coisa. Não sabia o que estava fazendo no mundo. Antes, eu também não sabia muito bem. Mas um viciado vive para que? Para se destruir e destruir aos outros? Pensei, naquela tarde, que seria melhor que eu tivesse morrido, mesmo que fosse só pelo amor à minha mãe. De qualquer forma, não sabia mais se existia ou não..."
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